Pele descartada de procedimentos estéticos contém célula capaz de reparar tecidos lesionados
O que começa com uma lipoaspiração pode terminar diminuindo custos do sistema público de saúde. Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a professora Andrea Trentin, do Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética, pesquisa células presentes em sobras de pele de cirurgias plásticas – elas promovem uma cicatrização mais rápida de lesões profundas, como as queimaduras. Obtidas em parceria com o Hospital Universitário, são gorduras descartadas de procedimentos como bariátrica e lifting facial.
Casos graves de tecidos queimados ocasionam alto custo financeiro ao SUS. Um dos procedimentos é o autoenxerto, que retira tecido de uma área sadia do paciente e o aplica na camada mais fina da pele, a epiderme.
O projeto desenvolvido por Trentin e sua equipe pretende acelerar esse processo. Para isso, pesquisam como recuperar as células de pele ainda na primeira etapa da queimadura. “Não elimina a necessidade do autoenxerto”, explica, “mas promove uma regeneração mais rápida e de melhor qualidade”. A alternativa é útil principalmente para quadros nos quais a lesão é muito extensa e profunda.
Da polpa dentária ao adiposo, as células estromais mesenquimais analisadas pela professora estão presentes em vários tecidos do corpo humano. Elas auxiliam processos de reparação cutânea graças a características como capacidade de autorrenovação, facilidade de coleta e propriedades imunomoduladoras.
A pesquisadora da UFSC coordena o Laboratório de Células-Tronco e Regeneração Tecidual (Lacert) e, atualmente, estuda como cultivar, manter e amplificar o número de células estromais mesenquimais. “Visamos ao desenvolvimento de um produto de terapia celular avançada que não existe no SUS”, afirma a cientista.
Recuperação de queimaduras é lenta e cara
Queimaduras são um problema de saúde pública no Brasil. Números do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde registraram, de 2015 a 2020, 19.772 óbitos no país. A maior taxa de mortalidade concentra-se na região Sul, “parcialmente explicada pelo clima, que requer uso de fontes de calor durante o inverno”. Acidentes domiciliares e manuseio de substâncias quentes são as ocorrências mais comuns, informa o documento.
Nos hospitais públicos de Santa Catarina houve aumento de quase 30% dos casos entre 2008 e 2018. De janeiro a abril deste ano, o Hospital Universitário da UFSC autorizou 16 internações por queimadura – em 2022, o total chegou a 43. Nestes números, contudo, é preciso considerar que um paciente pode internar mais de uma vez. O tempo varia conforme o grau da lesão, podendo levar, em casos de alta complexidade, até 20 dias ou mais.
Trata-se de uma recuperação onerosa tanto para o paciente quanto para o orçamento público. Gasta-se no SUS uma média de R$3.583,65 por hospitalização, segundo dados da tese de doutorado Perfil epidemiológico e estimativas de custos hospitalares de vítimas de queimaduras, defendida em 2021 pela pesquisadora Pamela Saavedra, na Universidade de Brasília. Casos mais graves, no entanto, podem chegar a até R$152.440,37 para internados em unidades de cuidados intensivos, concluiu outro estudo de pesquisadores brasileiros.
É uma diferença que pode ser explicada pela dificuldade de avaliar todos os custos envolvidos no SUS, afirma o cirurgião plástico e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, José Adorno. Há gastos diretos, como medicamentos e infraestrutura hospitalar, e despesas “intangíveis” – a perda de qualidade de vida, por exemplo.
“Qualquer dia de internação que se reduza é um avanço tanto para o SUS quanto para o paciente”, resume Trentin. A longo prazo, a recuperação ocasionada pelas células estromais mesenquimais também auxilia na reintegração do paciente, minimizando suas sequelas funcionais e estéticas.
Falta de financiamento trava a aplicação da pesquisa
Além do HU, o Lacert mantém parceria com outras clínicas para receber peles que sobram de cirurgias plásticas. Todo o contato é feito mediante consentimento dos pacientes. Obtido o material, a equipe armazena as células dos tecidos em estufas próprias para observar como elas crescem e por quanto tempo permanecem saudáveis.
Anteriormente, o laboratório testou o potencial de regeneração dérmica das células em animais. O resultado foi uma cicatrização rápida e de qualidade. Mas por que o estudo ainda não foi aplicado em seres humanos? “Nós não temos condições porque precisa de um financiamento bem alto, a nível SUS, de ministério e secretaria de Saúde”, afirma a coordenadora do Lacert. “É preciso construir uma estrutura própria dentro de um hospital, com sistemas de filtragem de ar, esterilização, construção de salas e antessalas, aquisição de equipamentos. Tem toda uma adaptação”. Soma-se ainda o processo de regulamentação da Anvisa, cuja tramitação pode demorar anos, a depender do projeto.
A pesquisadora se refere aos Centros de Terapia Celular, que reúnem equipes multidisciplinares para estudar a aplicação de células-tronco. São unidades já implementadas em hospitais de São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba – Florianópolis não possui nenhuma.
Pesquisadora aposta no potencial tecnológico do estudo
Uma das possibilidades para financiamento seria o convênio com empresas, ressalta Trentin, incluindo a abertura de uma startup. “Nossa abordagem tem um potencial biotecnológico grande. Desenvolvemos um produto tanto para medicina humana quanto veterinária, com ampla aplicação não só em reparo de pele, mas em outros tipos de lesão, como do sistema nervoso.”
Mesmo a manutenção do estudo atual enfrenta problemas de infraestrutura na universidade. “A tecnologia evolui e a gente não tem condições para acompanhar outros institutos internacionais. Estamos perdendo aqui.”
Trentin faz menção à escassez de editais públicos para fomento das pesquisas e sinaliza para parcerias público-privadas que possam alavancar a indústria de biotecnologia. “Precisamos de técnicos, de laboratórios, de biólogos, químicos e farmacêuticos. Precisamos de uma infraestrutura adequada para a manutenção das células nas estufas. Se a luz cai, perdemos experimentos em andamento nas estufas e armazenados no ultrafreezer.”
Próximos passos
O Lacert atua há mais de 20 anos e integra o Centro de Ciências Biológicas da UFSC. Dedica-se aos estudos sobre células-tronco, engenharia de tecidos e medicina regenerativa. Trentin coordena o laboratório junto dos professores. Ricardo Garcez e Talita Jeremias.
Neste momento, o grupo pesquisa processos de envelhecimento das células estromais mesenquimais. O objetivo é entender melhor suas capacidades de reparo e regeneração.
Fonte: Notícias UFSC