Por Nildo Ouriques*
Nós que nascemos no aparente, poderíamos suportar o real?
Fernando Pessoa
A aparência é a essência de nossa época – aparência é a nossa política, aparência a nossa moral, aparência a nossa religião, aparência a nossa ciência.
Ludwig Feuerbach
“… toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem diretamente…”
Karl Marx
Há algum tempo – não saberia dizer com precisão quando o fenômeno realmente iniciou – a luta política assumiu entre nós uma forma “simbólica”, para dizê-lo no jargão acadêmico. O real importa pouco, mas a disputa pelo “simbólico” ou “imaginário” simula-se quase redentora! A radical operação é consequência da ofensiva burguesa em curso responsável por confinar a esquerda à disputa meramente moral, como se fosse possível transformar a realidade com a simples mudança de mentalidade ou a disputa de valores. É uma vitória considerável da ideologia das classes dominantes e um recurso cínico e impotente da esquerda liberal, pois enquanto essa busca tão somente um lugar confortável no interior da ordem burguesa, àquela amplia de maneira inédita sua dominação político-ideológica na sociedade capitalista sem verdadeira contestação. A afirmação de valores supostamente “humanistas” por parte da esquerda liberal, ao contrário da vã pretensão, apenas valida a sociedade capitalista no reforço do pluralismo tolerado pela direita liberal sempre que as condições da crise econômica e do regime político permitem.
A análise sobre recentes acontecimentos indica que, em larga medida, a esquerda liberal dominante não cansa de combater inimigos opacos e em não poucos casos, até mesmo inimigos invisíveis ou fantasmagóricos. A primeira vez que observei o “ato” foi quando alguns estudantes orientados pela esquerda liberal denunciaram as pichações nos banheiros de nossa universidade como um atentado à moral, aos bons costumes e, sobretudo, destinados ao enfrentamento do racismo, do nazismo e do fascismo. Em minha trajetória política, jamais me ocorreu o uso de pichações no banheiro para convocar as massas ou mesmo para fazer agitação política… Tampouco ouvi algum publicitário exitoso, dirigente partidário experiente ou líder sindical antenado, indicar as paredes dos banheiros como meio para insuflar as massas; afinal, a despeito do eventual uso diário, a capacidade de difusão de uma pichação ao lado do vaso sanitário não pode competir remotamente com qualquer grupo de whatsaap de uma Atlética ou Centro Acadêmico. É ocioso falar do poder de divulgação do Face, Twitter, Instagram ou canais de Youtube, com milhares de seguidores… O contraste é demasiado gritante para ser ignorado: enquanto até mesmo os políticos burgueses lançam mão dos benefícios da big data e o governo conservador petucano defende uma CPI das “Fake News”, os universitários se ocupavam das pichações em banheiros?
As pichações anônimas denunciadas na UFSC – de inequívoco apelo racista – também praticavam apologia ao nazismo. Não por coincidência, pouco tempo depois, a polícia federal identificava e prendia quatro estudantes de nossa universidade organizados em uma “célula nazista”. Em sessão extraordinária realizada em 22 de novembro de 2022, o CUn reuniu, discutiu o problema e votou por unanimidade o merecido repúdio da instituição à propaganda da direita liberal. Entretanto, identificado e repudiado o crime pela instância máxima da universidade, a batalha cessou.
Ao utilizar os banheiros no CSE no final do semestre passado observei que ainda exibem propaganda de todo tipo – racistas e homofóbicas – mas eram especialmente insistentes e agressivas contra os comunistas. Genocidas é o adjetivo mais leve destinado a nós, os vermelhos. É ilustrativo da conduta da esquerda liberal acolher e proteger o “outro”, embora a defesa dos comunas não figure entre suas prioridades. Assim, o repúdio ao racismo e ao nazismo são frequentes enquanto o anticomunismo é simplesmente ignorado como se não existisse. Há, de fato, uma hierarquização moral do protesto, razão pela qual os comunistas não são objeto de solidariedade. Nada no mundo da política ocorre por acaso, motivo suficiente para colocar alguma atenção nesse esquecimento ou omissão deliberada. Ademais, ninguém com os dois pés na rapadura pode ignorar a importância social do anticomunismo em nossa história. A propósito, pesquisa de recente divulgação indica que 31% da população teme a ameaça comunista e outros 13% aceitam a hipótese em parte. A ideologia anticomunista é recurso antigo do liberalismo e notadamente mais eficaz diante da despolitização produzida pela hegemonia liberal no interior da esquerda nas duas últimas décadas.
Um retrato na parede
Expressão de tempos não tão distantes, na entrada do Centro Sócio Econômico (CSE) dividem a parede de maneira quase harmônica dois personagens: Karl Marx e Ludwig Von Mises. A origem da homenagem a Marx foi o evento anual da WAPE (World Association for Political Economy) que o IELA sediou, com a presença de muitos intelectuais de vários países do mundo em 2013 (China, Índia, Canadá, Vietnam, Escócia, México, Alemanha, Estados Unidos, Japão, Brasil, etc). O registro comemorativo daquele seminário internacional é uma placa com a célebre sacada de Marx elaborado com o refinado estilo literário do alemão presente no Manifesto Comunista de 1844 (“tudo que é solido se desmancha no ar”). Algum tempo depois de nosso evento – numa revanche que me rendeu muito riso e nenhuma indignação – os liberais de direita solicitaram a diretora do CSE permissão para a publicação de outra placa em homenagem ao teólogo austríaco Von Mises ao ladinho do Marx. Na verdade, o ato cômico não me importou, pois, a disputa “simbólica” se referia a algo concreto: a hegemonia liberal no currículo de economia era real e desde sempre dominante; portanto, nada mais justo que figurar na parede o que já estava na cabeça da maioria dos alunos e professores.
Diante da amnésia social que marca nosso tempo, é preciso recordar que a disputa ideológica nas universidades já foi muito mais intensa que a agitação barata em banheiros. A luta ideológica não é simbólica ou imaginária; ao contrário, historicamente foi responsável, por exemplo, pela mobilização estudantil à sucessivas reivindicações de reformas curriculares destinadas a colar sua formação às condições da realidade brasileira, orientada por espírito crítico e sólida formação científica. Mas à falta de memória atual corresponde a ausência de um movimento estudantil forte, representativo e real (o mesmo ocorre com os professore sob circunstâncias particulares). No entanto, a direita liberal não desistiu da luta ideológica e, em consequência, segue soberana no comando das ações sem as “mediações” que a esquerda liberal tanto valoriza como refúgio político.
A campanha contra o IELA
A propósito, lembro de uma época recente em que nós, os bolivarianos, sofríamos uma campanha cerrada de maneira bem menos discreta e com meios infinitamente mais potentes do que as pichações confinadas nos banheiros da UFSC. Os elogios aos estudos latino-americanos desenvolvidos nas duas últimas décadas no IELA-UFSC não brotavam em paredes reservadas à meditação solitária determinada por razões fisiológicas; ao contrário, a direita liberal não vacilava em cuidar de nossa reputação com insistência e método. Há pouco tempo, o trabalho ideológico da direita liberal utilizava a Revista Veja na qual a coluna de Reinaldo Azevedo cumpria função estratégica para combater e manufaturar a opinião pública contra nosso Instituto. Fundado em 2006, o IELA-UFSC já nasceu sob intensa campanha contra sua existência.
Em 29 de janeiro de 2009, Reinaldo Azevedo não vacilava nas páginas da Veja:
Na Universidade Federal de Santa Catarina, existe um troço chamado Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA)… A principal atividade do IELA é promover, atenção!, as Jornadas Bolivarianas. Sim, vocês entenderam. Em abril, acontece a quinta edição. Aí o leitor cético pensa assim: “Ah, Reinaldo, a UFSC não tem nada a ver com isso”. Tem, sim. Na página oficial da universidade, as tais jornadas merecem destaque, como vocês poderão ver.
Em 28 de outubro de 2011, o colunista reproduzia carta de um estudante com a manchete de letras garrafais:
“A Universidade Federal de Santa Catarina é uma das instituições em que o delírio da extrema esquerda chegou longe. Há lá até uma facção bolivariana, acreditem!”
Em 26 de março de 2014, Reinaldo separava novamente o joio do trigo: a maconha na UFSC não era bom sinal, mas havia coisa muita pior:
De toda sorte, consomem-se drogas mais pesadas na Universidade Federal de Santa Catarina. Que eu saiba, é a única do país que conta com um núcleo bolivariano: o “Jornadas Bolivarianas”, que tem o “Instituto de Estudos Latino-Americanos”. No mês que vem, eles vão até fazer um seminário. Convenham: até que a maconha, nesse contexto, é inofensiva, né? Já o bolivarianismo, não. Este mata mesmo, como prova a Venezuela.
Na mesma linha, Felipe Moura Brasil, outro jornalista devoto do liberalismo e anti-comunista convicto repetia que
A UFSC é aquela universidade onde há “Jornadas Bolivarianas”, nas quais é ensinada uma droga muito mais pesada que a maconha, como já comentou Reinaldo Azevedo. La se reclama das balas de borracha da política contra aqueles que infringem a lei, enquanto se faz propaganda da ditadura assassina que manda chumbo grosso em manifestantes que exigem democracia.
O cerco ao IELA-UFSC permaneceu por anos como pauta permanente na principal revista do jornalismo brasileiro com óbvia repercussão em dezenas de blogs, comentaristas de rádio e TV, com direito a discursos parlamentares pelo país afora. Até mesmo no episódio em que a polícia buscava consumidores ou supostos traficantes na UFSC, o problema de fundo deveria ser o… IELA
Após a “batalha do bosque” ocorrida em 25 de março de 2014 no CFH – recebi a visita de uma jovem jornalista da afamada revista semanal (porta voz mais importante da direita) pronta para me espetar com perguntas previamente elaboradas em conjunto com seu editor e o núcleo duro da publicação. O alvo era claro: o “caos” na UFSC tinha certamente um mentor intelectual, alguém por trás dos panos com astúcia e financiamento externo capaz de conspirar contra a paz de nossas inocentes universidades. A aprendiz de jornalista buscava provas porque já tinha firmes convicções anti-bolivarianas.
A campanha da Revista Veja contra o IELA gerou repúdio irrestrito entre nós ao ponto de todos seus membros recomendarem não receber a jornalista com o “sólido argumento” de que aqui, na UFSC, somente o diretor do CTC teria concedido a entrevista; ao contrário das previsões sombrias, a entrevista foi ótima e lamento não ter solicitado permissão para gravá-la. As perguntas concluíram abruptamente quando a repórter indagou sobre as razões das Jornadas Bolivarianas e da presença inusitada e suspeita da concepção bolivariana presente em nossa universidade, especialmente grave quando considerados os perigos decorrentes do conceito de “Pátria Grande”, que, aos seus olhos, antecipavam o fim ou a diluição de nossa integridade territorial e nosso futuro como nação. Não tive outro recurso senão ler com parcimônia e lentamente – para espanto da jovem e desavisada jornalista – o primeiro capítulo de nossa constituição, especialmente importante e claro no parágrafo único, aquele que estabelece os princípios fundamentais da Constituição de 1988
“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
A surpresa da “foca” não poderia ter sido maior diante da inesperada revelação do conteúdo bolivariano da Constituição de 1988; contrariada, sem esconder a enorme decepção, ela agradeceu, encerrou melancolicamente a entrevista e saiu afirmando a publicação da matéria na nova edição. No fim de semana, num caixa de supermercado, vi a nova edição da Revista Veja; folhei ali mesmo e constatei que nada havia sido publicado. Na segunda feira, a primeira hora, liguei para a jornalista e perguntei, curioso, sobre a sorte da entrevista: “professor, sabe como é, a situação no país é muito volátil e tudo é muito rápido… a agenda mudou, emergiram outras urgências e o editor decidiu se dedicar a outro tema”. Claro, “entendo perfeitamente”, respondi, quase as gargalhadas. Um foca é um foca! Um foca servil será sempre um jornalista servil.
No IELA, desde sempre nos orientamos pelo jargão popular segundo o qual “bom cabrito não berra” e, portanto, jamais denunciamos a campanha midiática contra o bolivarianismo do Instituto. Ao contrário, a cada peça publicitária contra o esforço intelectual produzido aqui, simplesmente dobrávamos a aposta. Um personagem de Cervantes tão ignorado quanto incompreendido na ciência política, orientava nossos passos: se os cães ladram, é porque a caravana passa.
A consciência ingênua que informa a esquerda liberal cuja maior expressão é indiscutivelmente Lula, somente percebeu a consistência ideológica da campanha da direita quando, numa disputa presidencial, a direita ultraliberal indicou o futuro venezuelano como a ante-sala do caos definitivo do país, além de exemplo da irracionalidade humana da qual todo eleitor supostamente deveria fugir. O brado da direita era claro: “O Brasil não será uma Venezuela”! A despeito da agressividade, a campanha dirigida contra nós do IELA não sensibilizou ninguém; entretanto, mais tarde, a esquerda liberal percebeu o problema a partir do viés eleitoral porque na prática, é cativa da concepção parlamentar de política; ou seja, o que não tem expressão eleitoral, não existe! Na eleição presidencial de 2014 a “ameaça bolivariana” era ingrediente decisivo na propaganda da direita contra a esquerda liberal ao apontar a Venezuela como expressão de nosso futuro e inevitável fracasso, caso Haddad vencesse a disputa presidencial.
O leitor sem memória dirá: “Reinaldo Azevedo, escreveu isso”? Sim, o jornalista agora dedicado à apologia da esquerda liberal contra a ameaça bolsonarista era um dedicado servidor da ideologia anti-bolivariana! Ele mesmo!! Ontem o rapaz estava dedicado à luta contra a esquerda radical e hoje, convertido, é devoto aprendiz da esquerda liberal contra o “neofascismo”. “Rei”, como é tratado pelos íntimos, nunca brinca em serviço. Naquele tempo, a revista Veja vendia nada menos que 1 milhão de exemplares semanais e turbinava também a versão eletrônica. A linha editorial era anticomunista, mas o foco era mesmo o sistemático ataque aos bolivarianos. Enquanto a direita liberal considerava o bolivarianismo um tumor mais maligno e agressivo que o comunismo, a esquerda liberal dava de ombros, afinal, tal como expressou o ex-chanceler mexicano e acadêmico Jorge Castañeda instalado confortavelmente na Princeton University, Lula em seus dois mandatos matinha saudável distância de Hugo Chávez, a representação mais fiel da “esquerda irracional”.
A despeito de tropeços, a campanha ideológica da direita seguiu seu ritmo normal mas ganhou contornos mais graves aqui na UFSC. Nas edições das Jornadas Bolivarianas de 2015, 2016 e 2017 a direita liberal não vacilou em intervir diretamente em nossos eventos. Nas três edições – uma realizada no auditório do CSE e as demais na reitoria – a direita ultraliberal invadiu nossos eventos em protesto contra a existência do IELA e a presença de convidados comprometidos com “terrorismo” e “assassinatos em massa” em seus países, especialmente na Venezuela. Em uma das invasões, a “terrorista” em questão era uma perigosa ex-ministra da educação da Venezuela responsável – segundo a UNESCO – de erradicar o analfabetismo no país de Bolívar. Os atos da direita liberal eram devidamente filmados por seus militantes – entre os quais duas estudantes de pós-graduação do curso de Direito – e poucos minutos depois se proliferavam nas redes digitais na conhecida operação inaugurada por Edward Bernays em 1933 destinada a organizar o caos.
Nos atos da direita liberal contra o IELA não faltavam elogios a todos nós e, especialmente salientes, era o adjetivo de… “genocidas”. A divulgação das imagens obedecia à lógica do “cancelamento”, mais tarde utilizada em larga medida pela esquerda liberal identitária. A ação da direita não era episódica; ao contrário, foi cumulativa e, portanto, sistemática. A interrupção da prática ocorreu quando de maneira preventiva reuni-me com o reitor às vésperas das Jornadas em 2018 advertindo pessoalmente que se os liberais de direita invadissem novamente nosso evento – posto que a reitoria após reiterados pedidos respondia afirmando seu zelo apenas pelo patrimônio material – nós mesmos cuidaríamos da segurança do evento à maneira bolivariana. Foi o suficiente para conquistar a paz.
No entanto, a despeito de nossa firme disposição, a verdade é que a pressão da direita liberal contra os bolivarianos e seu “estranho” Instituto diminuiu também por razões político-ideológicas. A ofensiva ultraliberal arrefeceu aqui na UFSC por causa elementar: é sempre mais fácil adorar Von Mises e Hayeck em abstrato do que justificá-los a luz da ação de Michel Temer, Henrique Meireles e Pedro Parente. Da mesma forma, é melhor indicar o paraíso liberal no livro-texto dos teólogos do que sustentar as “virtudes” de um governo ultraliberal de Bolsonaro e Mourão. O liberalismo tem certo poder de sedução quando discutido em abstrato… O aprofundamento da linha liberal a partir do governo Temer foi gradualmente tirando o encanto do apelo ideológico do liberalismo.
Não obstante, a campanha contra as universidades públicas seguiu seu curso normal e creio que nem mesmo o suicídio de Cao ocorrido naquele triste 2 outubro de 2017 logrou estancar a ofensiva burguesa. O governo do protofascista Bolsonaro tentou o “Future-se” mas, sem recursos para cooptar uma parte dos universitários, assistiu impotente à derrota do projeto pela força combinada do protesto estudantil, do rechaço da burocracia universitária e de parte importante de professores e técnicos. Assim, durante seu mandato atuou na regra básica: congelar e contingenciar recursos orçamentários. De resto, limitou-se a recusar o primeiro da lista nas eleições para reitor e nomear, aqui e ali, reitores de sua conveniência.
A universidade, ao contrário do que supõe a consciência ingênua, encontra-se em situação difícil. O fracasso completo do projeto da “universidade inclusiva” (Haddad e Janine Ribeiro) e a impossibilidade real cada dia mais evidente de avançar para um novo impulso industrializante, redefiniu drasticamente a função social da universidade no terreno da ciência e da tecnologia. O academicismo dominante no seu interior opera fortalecendo a consciência ingênua e paralisando a necessária transição para a consciência crítica; por isso, o academicismo representa tão somente uma espécie de autolegitimação de nossa existência sem validação social. É verdade que em algumas áreas existem projetos vinculados às empresas (estatais e multinacionais) além de extensões realizadas junto aos chamados “movimento sociais”. A despeito de eventuais méritos, semelhantes iniciativas são completamente insuficientes para justificar a existência das universidades. A percepção dessa inutilidade social aparece entre nós pelo reclamo permanente contra a austeridade orçamentária particularmente aguda desde janeiro de 2015 quando Dilma – empunhando o bordão de seu segundo mandato, a “Pátria Educadora” – cortou quase 10 bilhões do orçamento na educação; após o empurrão da ex-presidente, o bonde da austeridade não parou mais. Nesse ano, a “reconstituição do orçamento” realizado pelo governo é efetivamente simbólica. Em abril, Lula anunciou míseros 2,44 bilhões aos famintos reitores, montante que, quando dividido, é notoriamente incapaz de resolver a grave crise de investimento e custeio que se acumula durante décadas entre nós e, ademais, totalmente insuficiente diante das exigências sociais de um país dependente e subdesenvolvido com enorme dependência científica e tecnológica. Na verdade, além da propaganda oficial, as universidades seguem submetidas a mais completa austeridade. A diferença agora é que nem mesmo um modesto “protesto simbólico” há entre nós. Aos que recusam meu diagnóstico, busquem informações sobre a última “disputa” pela presidência da Andifes.
Nessas circunstâncias – sem o projeto da universidade necessária e com financiamento escasso – podemos compreender o insistente recurso aos inimigos invisíveis como mera expressão da ideologia da esquerda liberal destinado a justificar nossa existência que, tal como afirmou Florestan Fernandes, somente pode tirar os recursos da miséria do povo. Na solidão política ou sob hegemonia do liberalismo de esquerda, o professor, aluno ou técnico, busca justificar sua existência sem conexão real com a gravíssima e histórica condição de dependência. A vitória eleitoral da esquerda liberal nas eleições presidenciais e a firme decisão do governo petucano (Lula/Alckmin) em seguir com a econômica política do rentismo agora dirigido pelo uspiano Haddad, indica que as tensões inerentes da economia e do regime político em frangalhos, tende a fomentar ações da direita também contra a existência das universidades públicas. É difícil não reconhecer que seremos um alvo fácil a despeito do otimismo interessado daqueles grupos que em nosso meio se julgam suficientemente produtivos ou úteis para escapar dos cortes e sobreviver, mesmo com o eventual fim do sistema universitário atual.
É preciso dizê-lo de maneira clara: não temos fascismo no Brasil! O grau de liberdade que de fato desfrutamos é imenso a despeito da renúncia voluntária à ação política de natureza crítica. Nossos sindicatos não estão sob intervenção; realizam congressos e deflagram greves. Os partidos de esquerda não estão proscritos: lançam candidatos à presidência e elegem deputados à luz do dia. As editoras não são empasteladas, estão todas abertas e os jornais das organizações de esquerda são regularmente publicados. A liberdade para movimentos sociais é igualmente ampla nos limites do direito burguês. A corte suprema funciona como sempre funcionou, tal como o congresso nacional. A imprensa burguesa-livre pode ser acessada sob a proteção da livre escolha. Enfim, todos os cânones do liberalismo são respeitados pela classe dominante a despeito dos conflitos com o governo do protofascista Bolsonaro. Qual a razão então para a invocação do fantasma do fascismo? Ora, ocorre que a evocação fantasmagórica do fascismo é um instrumento valioso para justificar a paralisia política e a submissão intelectual e política ao governo petucano diante das classes dominantes. É uma paralisia intelectual profunda, jamais vista em nosso país, inexistente durante a ditadura! É também uma covardia político-intelectual sem precedentes em nossa história e, ademais, um cimento seguro para que a classe dominante possa – quando e se necessário – lançar mão de uma modalidade qualquer de terrorismo de Estado para assegurar seus privilégios de classe e seu domínio político completo sem oposição ou resistência necessária. É uma servidão voluntária fora do contexto medieval do século XVI!!!
A despeito da derrota eleitoral da direita liberal, o inimigo aparente segue aqui distribuindo as cartas comodamente porque é importante para o sustento da esquerda liberal limitada à enfadonha repetição da digestão moral da pobreza no terceiro mandato de Lula sob a “novidade” de sua versão petucana Lula/Alckmin.
Portanto, o miserável artifício do inimigo aparente cumpre uma função ideológica para o liberalismo de esquerda e o apoio a um governo que nos assuntos fundamentais do Estado, da economia, da consciência de classe e da disputa cultural, se comporta como se estivéssemos condenados a viver na margem, figurando tão somente como o testemunho impotente sob a bandeira do pluralismo.
Eis a razão pela qual a defesa das ações afirmativas opera objetivamente como renúncia à busca do acesso universal à universidade, ou seja, o fim do vestibular; o “combate” às pichações contra o “fascismo” é útil para justificar a renúncia real da disputa ideológica a partir de interesses de classe; a defesa das políticas de permanência ignora o desespero originado no desemprego elevado e nos baixíssimos salários impostos a massa dos trabalhadores, nossos potenciais alunos; da mesma forma, a defesa abstrata da universidade se cala diante da grave evasão escolar cuja origem é atribuída ao mundo pós pandêmico e às “tendências mundiais”; o elogio ao reajuste das bolsas de pós-graduação ignora a maior crise de legitimidade e da quase nula função social da universidade nas condições do capitalismo dependente rentístico. A despeito de suas limitações, essa linha orientada pelo menor esforço seguirá existindo porque é peça fundamental no sustento do atual governo e jamais o caminho para superar nossas graves limitações e impasses. Portanto, não estamos diante de políticas transitórias, necessárias para a conquista de outra universidade – ilustrada, com força científica, atenta à realidade brasileira e aos ares do mundo – mas tão somente de políticas ùteis à defesa eleitoral do governo petucano.
Ademais, constitui grave erro afirmar os limites político-ideológicos dominantes a partir do surrado argumento da “adversa correlação de forças” quando temos combates urgentes ao alcance de nossas mãos! Entretanto, enquanto o inimigo aparente comandar cada passo, cada minuto da existência da maioria dos professores, alunos e técnicos, nada será possível até que os fatos ou as tragédias (como o suicídio de Cancelier, o nosso Cao) nos atropelem novamente. Não seria exagero prever que, diante da eventual emergência do inimigo real – resultado necessário da ofensiva político-ideológica da classe dominante contra todos nós – o grau de resistência seria nulo. Afinal, o progressismo que informa a esquerda liberal já teria sido domesticado em plena liberdade para a mais completa servidão como destino.
Revisão: Junia Zaidan
*Nildo Domingos Ouriques é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA).