Denominada dumping social, a prática desrespeita recorrentemente a legislação trabalhista, atingindo mulheres em diversos ofícios; profissionais negras são as mais afetadas segundo estudo
O ambiente de trabalho pode ser bastante árduo para as mulheres. Além das múltiplas jornadas diárias, muitas profissionais encaram atividades desgastantes em situação de vulnerabilidade, além de cenários marcados pela desigualdade de gênero, preconceito e com salários inferiores aos de homens. Na sociedade brasileira, esses problemas são recorrentes e recebem o nome de dumping social. Trata-se de ações constantes de desrespeito à legislação trabalhista, com especial consequência para as mulheres. É o que mostra a dissertação de mestrado de Mariane Lima Borges Brasil, pesquisadora em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Faculdade de Direito (FD) da USP.
Defendida no ano de 2022, a pesquisa é intitulada Dumping social e a condição das mulheres no mercado de trabalho, e teve a orientação de Paulo Eduardo Vieira de Oliveira, professor associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito (FD) da USP e desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2). O estudo buscou compreender os aspectos históricos e conceituais do dumping social, além de seus efeitos na sociedade, especialmente com mulheres no mercado de trabalho. Para tanto, utilizaram-se de informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, feita entre 2012 e 2019 pelo IBGE, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
O dumping social configura a prática recorrente de desrespeito à legislação trabalhista, como forma de obter vantagem econômica sobre a concorrência, desvalorizando o trabalho humano e sua dignidade. “Trata-se da ação reiterada de desrespeito trabalhista, visando a reduzir custos. Isso acarreta problemas não só ao trabalhador, mas também à coletividade como um todo, pois abarrota o sistema judiciário de processos e prejudica as próprias empresas no sentido de incorrer em ações desleais no mercado de trabalho”, afirma a pesquisadora. Em tradução livre, a expressão dumping provém do verbo em inglês to dump e exprime a ação de rebaixar algo à condição de lixo, despejar, desfazer-se de algo e jogar fora.
Segundo o estudo, a polarização e a feminização dos postos de trabalho são expressivas, ou seja, é frequente a atribuição de determinadas funções às mulheres, como o trabalho doméstico. “As profissões mais setorizadas (feminizadas) geralmente são mais precárias”, afirma Mariane. Além disso, as mulheres costumam permanecer mais tempo desempregadas em comparação com os homens, em razão das condições necessárias para aceitar o trabalho, como distância e jornada laboral, para não atrapalhar as atividades de casa e o cuidado com seus filhos. Em uma projeção para 2023, feita pelo Ipea, haverá um crescimento na participação feminina no trabalho, porém mais de um terço das mulheres em idade ativa ainda estarão fora do mercado. Mariane explica esse dado destacando que “a responsabilidade pelos cuidados – da casa, de filhos, de idosos e da família – recai sobre as mulheres”.
Uma vez empregadas, as mulheres encaram contextos inferiores de trabalho. A pesquisa mostrou que as profissionais trabalham em ocupações precárias, frequentemente contratadas sem assinatura na carteira de trabalho e remuneração baixíssima, especialmente na zona rural, além de enfrentarem dificuldades relacionadas à discriminação de gênero.
O estudo aponta que, em 2019, as mulheres recebiam cerca de 77,7% do rendimento dos homens (R$ 1.985 frente a R$ 2.555). A situação piora com mulheres negras, que recebem salários inferiores aos dos homens brancos, das mulheres brancas e dos homens negros. Mariane apresenta três causas para a diferença de rendimentos: jornadas de trabalho remunerado menores (em razão das jornadas duplas ou triplas desempenhadas pelas mulheres); ocupação de postos de trabalho de má qualidade que, por consequência, pagam mal; e a existência de barreiras para a ascensão profissional das mulheres nos ambientes laborais. “Diante disso, supõe-se que, caso não sejam adotadas ações especificamente voltadas ao enfrentamento das desigualdades de gênero, a equiparação não será alcançada nas décadas finais deste milênio”, reforça Mariane em seu estudo.
Desigualdade histórica
A recorrência do dumping social com mulheres se dá, sobretudo, pelo histórico de desigualdade presente na sociedade brasileira. “O patriarcado sempre dificultou o acesso feminino aos postos de trabalho formais, principalmente para mulheres negras, que tiveram suas funções muito atreladas ao serviço de mão de obra não remunerado, sem contar o histórico escravagista do nosso País. Isso acarreta preconceito e exclusão de mulheres do mercado de trabalho, ocasionando desigualdade salarial e cargos inferiores.”
A divisão sexual do trabalho também interferiu no acesso feminino a condições dignas em seus ofícios. “As tarefas sociais são marcadas e oneradas por uma divisão baseada no papel ocupado por cada pessoa na sociedade capitalista. A divisão sexual do trabalho confere a todas as mulheres uma posição semelhante, na qual são atribuídas a elas tarefas das quais os homens são liberados”, afirma Mariane em seu mestrado. De acordo com a pesquisa, mulheres negras se encontram em maior desvantagem, representando 39% das pessoas sujeitas a postos de trabalho precários.
Além disso, com o desenvolvimento das indústrias em âmbito internacional, empresas implantaram políticas que alinhassem sua produção ao menor custo de mão de obra. “As grandes indústrias transferiram a maior parte de sua produção para os países periféricos do capital, onde constataram que a mão de obra é ostensivamente mais barata e alijada de muitos direitos que regulamentam as relações de trabalho, em comparação aos países de origem de tais empresas”, explica Mariane em sua pesquisa.
Regulamentação deficiente
Buscando minimizar o quadro internacional do dumping social foi criado, em meados da década de 1990, pela Organização Social do Trabalho (OIT) um Selo Social para validar a produção feita sem desrespeito a normas trabalhistas. A prática ainda é pouco utilizada, sofrendo resistência em diversos países, como o Brasil. “Nosso país e os países emergentes alegam não duvidar da importância da temática social e trabalhista, mas afirmam que há nelas um grande potencial para o protecionismo abusivo. O desafio reside em conciliar essas preocupações trabalhistas legítimas, elevando-as como preocupações primeiras com o comércio mundial”, afirma a pesquisadora.
Mariane explica que existe uma multa por dumping social que pode ser aplicada de forma judicial pelos magistrados da área trabalhista, ao condenar empresas que violarem recorrentemente direitos sociais. “Ela possui um perfil pedagógico e seu valor deve ser direcionado a um Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), com o objetivo de ser revertida à sociedade que foi lesada.”
Porém, segundo a pesquisadora, com a recente reforma trabalhista feita em 2017 pela Lei 13.467 de 2017, o profissional que não tiver sua solicitação de multa por dumping social atendida, pode ser condenado e perder o pedido. “Imagine que o trabalhador tenha feito várias solicitações na justiça do trabalho, como décimo terceiro, horas extras, férias e dumping social, e ele perca alguns desses pedidos. Nesse caso, ele pode ser condenado em custas judiciais e honorários sucumbenciais”, exemplifica Mariane.
Ao Jornal da USP, a pesquisadora conta que, ao embasar seu estudo sobre a condição das mulheres no mercado de trabalho, chamou sua atenção as dificuldades ainda maiores das empregadas domésticas, em razão do descaso jurídico com a situação. “O trabalho doméstico é fruto de um processo de escravização, que segue sendo feito majoritariamente por mulheres no Brasil. O grande problema é que, muitas vezes, os magistrados e as magistradas se tornam imparciais ao lidar com causas de trabalhadoras domésticas, por se utilizarem dessas mesmas profissionais em suas casas”, lamenta Mariane.
Ainda a pesquisadora ressalta que sua maior intenção com a pesquisa é, de fato, desinvisibilizar a condição das mulheres no mercado de trabalho, propondo uma medida judicial cabível, como condenação por dumping social. “Isso porque, nesse cenário, não é de se espantar que o reconhecimento e a consequente condenação dessa prática pelo Judiciário Trabalhista sejam míopes: em geral, tem-se enxergado a configuração de dumping social somente em relação a trabalhadoras e trabalhadores terceirizados, generalizando a classe, em que pese seus efeitos recaírem de forma mais acentuada e específica sobre as mulheres. Os tribunais ignoram por completo as facetas de sua opressão no mercado de trabalho e do patriarcado em geral, o que também se percebe com os registros sociais de raça”, avalia.
Fonte: Jornal da USP