Única professora trans da Universidade Federal de Santa Catarina é enfermeira psiquiátrica, com estudos no campo da saúde mental e reabilitação psicossocial
“Olha, viva a diferença! Que coisa boa que as pessoas pensam diferente, que fazem enfrentamentos e argumentos, porque que coisa triste é a certeza absoluta.” A frase de Helena Cortes é uma síntese de quem ela é como pessoa e professora. O lema “viva a diferença!”, inclusive, é tão frequente no vocabulário da docente que, ela conta, tornou-se meme entre seus alunos. Faz parte dos valores fundamentais de acolhimento às diferenças que norteiam toda a sua vida.
Helena atua como docente no Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) há cerca de um ano e meio. Ela veio por redistribuição da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde passou aproximadamente cinco anos. Sua chegada à UFSC foi motivada pela vontade de se aproximar do Departamento de Enfermagem da universidade, que ela classifica como “referência no território nacional, na consolidação das políticas do Sistema Único de Saúde [SUS]”, e a possibilidade de trazer suas próprias contribuições.
A jornada acadêmica da professora foi construída no campo da saúde mental. Helena é enfermeira psiquiátrica, com estudos sobre a saúde mental comunitária, a reforma psiquiátrica e a reabilitação psicossocial.
Seu trabalho envolve, entre outras questões, políticas públicas de saúde mental e os direitos de pessoas em sofrimento psíquico, na perspectiva do cuidado em liberdade. “Nós lutamos por um cuidado que seja inclusivo, ético, e que as pessoas sejam cuidadas no território, nas suas comunidades, junto com seus afetos, com seu trabalho, com todos os equipamentos que o território pode ter”, explica.
Esse caminho, além de incluir a luta pela liberdade, foi construído a partir dela. A docente fez sua formação e mestrado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), incluindo um breve período de estudos na Itália. Seu doutorado foi na Universidade de São Paulo (USP), tanto na escola da cidade de São Paulo quanto na de Ribeirão Preto. Além disso, passou 13 anos atuando no Exército. De família com poucos recursos financeiros, o serviço militar foi a forma que encontrou de se sustentar e realizar seus estudos. Pediu demissão, no entanto, assim que foi aprovada para o doutorado. “Era incompatível com o meu trabalho e com a minha vida. Já tinha dado aquele ciclo da minha vida, e eu entendia que eu queria a carreira acadêmica”, conta.
“Foi tudo muito diferente, eu acho que isso só me deu um estofo antropológico, inclusive, para, não compreender, mas para entender, talvez, que existem muitas formas de ser e estar no mundo, de fazer esses enfrentamentos cotidianos numa sociedade que é héterocisnormativa, é patriarcal, é excludente”.
Helena destaca a forma como as experiências vivendo em tantos lugares foram importantes para sua formação pessoal e como professora e pesquisadora, pela oportunidade de observar como as pessoas lidam com suas diferentes questões, e ter contato com diferentes culturas. “Isso só agregou na minha colcha de retalhos da vida”, descreve.
Como professora, passou, ainda, como docente substituta na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) antes de ser aprovada no concurso para a UFRB. Foi durante seu período na universidade baiana que Helena passou pela transição de gênero. Atualmente, é a única mulher trans atuando como docente na UFSC.
“Quando as pessoas dizem assim: ah, que bom, parabéns. Eu digo: muito obrigada, né? Muito obrigada, mas também eu falo ‘que pena’. Que pena que eu sou a primeira, por que eu sou a primeira? Eu queria estar sendo a centésima pessoa trans que é a professora dessa universidade, que é uma pessoa não cisgênera. Então, uma universidade tão tradicional, quantos anos de história tem essa universidade, e eu sou a primeira. Quer dizer que antes de mim não tiveram outras pessoas competentes e inteligentes e capazes? Não, claro que não, né?
Helena ressalta o papel de vanguarda do Departamento de Enfermagem da UFSC, que aprovou o processo de redistribuição de uma pessoa transgênera por sua caminhada acadêmica. “Não foi preponderante eu ser uma pessoa trans, para o bem ou para o mal. Isso não importou, importou que eu tinha uma caminhada com a minha produção de conhecimento”, afirma.
Essa é uma das principais lutas de Helena em sua carreira como pesquisadora. Ainda que seus estudos no campo da saúde mental sejam, também, orientados para pessoas transgêneras, ela reflete sobre a importância de não ser resumida a esse papel. A professora destaca a escolha por estudar questões relacionadas à transgeneridade quando estão ligadas a sua área e seus interesses, e não meramente por ser uma mulher trans. Ela ainda menciona que é importante a reafirmação de que conquistou o espaço que ocupa através de sua construção acadêmica, e não por sua identidade. “O que me autoriza falar para além do meu lugar de fala é a minha caminhada, é a minha construção acadêmica, minha construção ética, de trabalho no campo da saúde mental comunitária, que vai me autorizando a falar de saúde mental também.”
Helena ainda menciona as dificuldades provocadas pela transfobia estrutural que predomina, tanto na sociedade, quanto no ambiente universitário, citando a forma como é invisibilizada em tantos momentos. “Às vezes eu me sinto bem invisibilizada, apagada em muitas situações. Pela instituição como um todo, e talvez pela sociedade como um todo”, reflete. Ela também fala sobre a importância dessa representatividade, afirmando que ocupar esses espaços é um ato de resistência, representando uma mudança: “Quando a gente vai dizendo para o sistema, com a nossa existência: olha, eu posso estar nesse lugar. Não só por ser, mas porque eu tenho uma caminhada que me autoriza a estar nesse lugar.”
Em 2023, Helena foi convidada pela Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, do Ministério da Saúde (SAES/MS), para compor o Grupo de Trabalho que deve rever a “Portaria do Processo Transsexualizador” – nome ao qual ela tece críticas, dizendo que “ninguém precisa de nenhum tipo de modificação corporal para se identificar como uma mulher ou como um homem”. Essa portaria prevê procedimentos técnicos para que pessoas trans, caso desejem, tenham acesso a procedimentos de mudança corporal. As reuniões começam nesta quinta-feira, dia 29. Helena se diz apreensiva, mas que pretende encarar o trabalho com muita gana, “com muita tranquilidade e com muita elegância”. Ela ainda afirma que o convite tem demandado muito estudo. “Entendo que, ao atuar por meio das políticas públicas, o impacto que você pode gerar na vida das pessoas não é pouca coisa”, explica.
“Ao mesmo tempo que eu saúdo as primeiras travestis, primeiras mulheres trans, que deram a vida para que hoje eu pudesse estar aqui falando contigo, é por elas que eu estou aqui falando e com elas que eu estou aqui falando. A gente também está construindo para as próximas que vão vir depois da gente.”
Laura Miranda
Imprensa Apufsc