Uma reforma da universidade brasileira

*Por Carlos Alberto Marques

A força bruta dos ventos nem sempre produz tempestade,
mas também ar fresco de sabedoria.

Recentemente, um ex-reitor afirmou: “As universidades brasileiras não têm autonomia para gerir seu próprio cotidiano. As federais, numa submissão extrema ao Estado, não têm autonomia nos meios, não rege patrimônio, não rege o [seu] pessoal, não rege insumos, processos, operações, e nem funcionamento. E a sua avaliação ainda é externa, e pouco transparente”. Porém, questiono: caso a Universidade Pública (UP) tivesse plena autonomia, saberia o quê fazer com ela?

A resposta a essa pergunta precisa ser vista sob diferentes aspectos. Do ponto de vista administrativo, creio ainda teria enormes dificuldades, pois a UP está acostumada à gestão das circunstâncias (emergenciais), à mendicância por recursos junto ao governo de plantão, às disputas de poder interno, uma burocracia encrostada e paralisante que afeta as atividades acadêmicas e uma submissão à força do corporativismo em seu interior, especialmente do pessoal técnico-administrativo (TAEs). Quando a UP tem que mudar alguma coisa, seu ritmo é lento, como a de um mastodonte.

Mas há algo ainda mais preocupante em relação a sua (não) autonomia e diz respeito à função social. As primeiras universidades, tais como a Universidade de Bolonha (1150), a Universidade de Paris (1200) e a Universidade de Oxford (1220), eram um recanto do saber, da erudição e da pesquisa desinteressada. Assim, a universidade, em sentido lato, foi o lugar de “proteção” do conhecimento socialmente referenciado, das várias culturas e do conhecimento científico produzido em diferentes épocas. Hoje, esse “poder” está ruindo, sendo ocupado, por exemplo, pelas chamadas big-techs (plataformas digitais, como Meta, Google, Amazon, Apple, OpenAI/ChatGPT etc.), que armazenam e distribuem informações, oferecendo suporte à população, à indústria de MBAs e toda sorte de cursos profissionalizantes via EaD. Uma das consequências imediatas é que ficou mais fácil obter um “título” universitário, com menor esforço intelectual. Claro, o diploma universitário ainda tem um valor de mercado, mas está perdendo esse valor, até porque está mais fácil obtê-lo nas “universidades de esquina”.

Esse cenário expressa a crescente privatização do ensino superior, atualmente em torno a 80% de um total de cerca 8.5 milhões de matrículas presenciais. Em cursos à distância as empresas de ensino há muito anos já oferecem mais vagas do que as instituições de ensino presencial. O grande negócio da educação privada opera uma carteira que amonta 126,5 bilhões de Reais (dados de 2019, https://www.r7.com/rl53). A educação representa 6,7% do PIB nacional – algo nada desprezível, considerando que a agricultura é apenas a metade desse valor e a indústria de transformação 12%.

Como afirma o presidente da FAPESP, “as empresas, quer dizer, quem fornece emprego, estão olhando para a capacitação, a habilidade do jovem, muito mais do que o diploma que ele tem escrito lá em seu currículo”. Talvez por isso é que as matrículas em cursos de engenharia no Brasil, entre instituições públicas e privadas, caíram 40%. Um fenômeno que mostra a força dessas mudanças no sistema de oferta de “conhecimento” em circulação no mercado educacional, impulsionadas pelas novas tecnologias e interesses privados. Ganham força e materializam-se, assim, novas formas de oferta de formação durante toda a vida, de natureza privada e na lógica do “fai-da-te” (faça-você-mesmo). É a vitória da visão pragmática ultraliberal, que exacerba o individualismo, do empresário de-si-mesmo – inclusive com a responsabilidade do fracasso individual.

Um importante papel das UPs no Brasil sempre foi o de ofertar formação profissional (graduação). Contudo, paulatinamente, elas vêm perdendo força como aspiração ou “recurso” social das famílias, como fator de progresso e uma garantia de acessão socioeconômica a seus filhos. Alguns fatores promovem isso, tais como a competição por alunos com as universidades privadas, a baixíssima expansão (e interiorização) da educação superior pública e as mudanças no mercado de trabalho. Dados apontam uma queda, entre 2015 e 2021, de 60% nas inscrições em universidades federais que perdem alunos em seus cursos de graduação. Portanto, se de fato perde a função formativa, para que serviria e o quê faria a universidade com sua autonomia?

Talvez as UPs justifiquem sua existência (e financiamento público) por serem as responsáveis por cerca de 90% das pesquisas nacionais, produzindo resultados de alta qualidade, apesar das dificuldades estruturais e financeiras. Isso significa que as UPs brasileiras (federais e algumas poucas estaduais, como as do Estado de São Paulo) se transformariam, por força das circunstâncias, em um modelo de universidade de pesquisa – como o são as universidades alemãs? E, por conta disso, a graduação ficaria mais a cargo das instituições privadas de ensino superior?

O que desejo apontar é que a questão do modelo de UP no Brasil precisa ser debatida nacionalmente. Atualmente, o perfil predominante da universidade brasileira é de uma instituição determinada pelo pragmatismo de servir ao mercado, voltada a atender as suas contingências e demandas, por mais justas e necessárias que sejam. Nossas UPs, reduzidas ao controle governamental, pelas forças de mercado e de seu corporativismo interno, encontram enormes dificuldades de estarem um passo-a-diante, pensando e atuando com uma visão de futuro. Moldam-se e se acostumam aos vários lobbies e corporações, ao governo de plantão e/ou agências de financiamento. O que menos se observa é a participação social direta, via entidades e vozes que representam os interesses e necessidades da maioria da população, que é pobre e desassistida.

Que tipo de universidade precisa um país com milhões de desempregados, com desigualdades sociais abissais e com uma enorme dependência tecnológica? Uma universidade que trabalhe, autônoma e conscientemente, para que alcancemos nossa soberania. Apenas uma universidade à altura dos desafios dos nossos tempos, a serviço da humanização das pessoas e da economia, da solidariedade como valor e que seja compromissada com um futuro mais sustentável do planeta, pode voltar a ser a referência para a juventude e para as famílias.

Difícil negar que o mundo atual está em processo de profundas transformações, globalizado por uma economia capitalista e concentradora de riqueza. Um mundo em que estamos todos sob risco de um colapso ambiental devastador e apartados socialmente devido às profundas desigualdades de direitos – ao trabalho, à alimentação e à moradia. A universidade não pode ficar alheia a esses problemas, às suas razões e as necessárias soluções. Ainda estamos muito presos a debates monotemáticos, ainda que muito importantes, a exemplo das identidades e/ou a questão da sua democracia interna. Na política universitária são praticamente inexistentes grandes debates sobre a universidade necessária (Darcy Ribeiro) para um país socialmente desigual. Qual universidade serve a um mundo cada vez mais autodestrutivo no tocante aos direitos humanos, à geração e garantias de emprego, de resistência ao determinismo tecnológico e à destruição do meio ambiente? São questões urgentes e altamente desafiadoras, estando aí, na nossa frente, indicando a miséria intelectual que nos assola. Cito apenas um exemplo. Recentemente, o BNDES divulgou um programa para a reindustrialização do país, dobrando o montante de recursos (agora com cerca de 5 bilhões de Reais), com o propósito de envolver escolas básicas, universidades e startups, em áreas estratégicas de fronteira tecnológica. O que as universidades têm a dizer sobre isso?

Portanto, parece ser necessária uma reforma universitária. Obviamente, o teor e a abrangência dessa reforma não é coisa de uma cabeça, mas do envolvimento de amplos setores, internos e externos à universidade. Ouso, no entanto, pontuar que essa reforma passa por uma ampla mudança nas suas estruturas, administrativas e acadêmicas, visando a simplificação, desburocratização, de reforço às atividades fins (de ensino, pesquisa e extensão) e de uma definição clara da função docente e dos TAEs. Passa ainda por uma revisão do tripé do Ensino-Pesquisa-Extensão – um modelo sem correspondência no mundo. Esse modelo se traduz em organizar um sistema único que pretende articular a oferta da formação profissional, a realização da pesquisa e de ações/atividades de extensão. Funciona pouco. Na universidade há cada vez mais ilhas funcionais e dissociativas de cada um componente desse tripé. Além do mais, uma coisa é reconhecer esse tripé como resultado global da universidade, outra é a exigência de exercício acadêmico permanente de cada docente em cada um desses componentes. Reconhecer isso abriria a possibilidade de, por exemplo, o/a docente ocupar pelo menos duas componentes desse tripé e obrigatoriamente na componente Ensino.

Tudo isso, a meu ver, possibilita ainda um grande debate sobre a necessidade de uma ampla reforma pedagógica. Essa partiria da premissa que é preciso definir e garantir percursos para uma maior autonomia ao estudante no processo de aprendizagem, com percursos mais contextualizados, interdisciplinares e de abordagem sistêmica, com uso adequado das tecnológicas, com currículos menos fragmentados, oferecendo os fundamentos teóricos e práticos da área de conhecimento de referência, com questões absolutamente conectadas com o mundo social e do trabalho. Uma reforma no sistema de pesquisa (integrado com o sistema de pós-graduação) que incentive a criatividade de jovens e com definições de linhas e áreas estratégicas prioritárias que expressem o esforço institucional em alinhamento com os interesses e necessidades do país. São premissas que produziriam os pilares para uma reforma na perspectiva de extensão, com um arcabouço legal e administrativo desburocratizado e que estabeleça, nos mesmos moldes da pesquisa, linhas e áreas estratégicas prioritárias alinhadas com os interesses e necessidades do país.

Sem uma reforma na UP pouco adiantará o alcance da autonomia plena. Corre o risco dela fechar-se em si mesma, presa a seus próprios interesses e com tendência de se autodefender. Todavia, com ou sem autonomia plena, a universidade precisa ser permanentemente avaliada, o que não pode ser confundido com autoavaliação. Para tanto, parece ser necessário a constituição de um Conselho Superior de Desenvolvimento Social, com a participação de diferentes segmentos da sociedade. Financiadora que é da universidade, cabe à sociedade e não ao governo ou a ela própria definir as linhas máximas de seu papel e responsabilidades, acompanhar seu funcionamento, a definição de metas e participar da avaliação dos resultados.

Enfim, o panorama em que se encontra a UP é preocupante. O crescente desinteresse das gerações mais jovens, talvez por uma mudança de perspectiva de futuro e as formas de autorrealização, impõem mudanças à universidade para acompanhar o tempo presente – ou faz isso ou corre o risco de se tornar irrelevante.

*Carlos Alberto Marques é professor do departamento de Metodologia de Ensino (MEN/CED/UFSC)