Por Dilvo Ristoff
O último Censo da Educação Superior revelou que, de 2019 para 2020, 151 instituições de educação superior (IES) deixaram de existir. A análise dos dados indica que esta redução só não foi maior porque o número de Universidades e Centros Universitários cresceu. A redução ficou por conta das Faculdades do setor privado. A explicação para o fenômeno está, em grande parte, na natureza dos Centros Universitários, pois estes, diferentemente das Faculdades, têm autonomia para abrir cursos e vagas.
Dada a dimensão do setor privado e a sua grande proximidade com o mercado financeiro, com o valor das ações na bolsa, com o Ebitda das empresas, etc., a tendência seria atribuir essa redução às frequentes fusões e aquisições que ocorrem na esfera empresarial da educação. Os dados mostram, no entanto, que além das fusões e aquisições está em curso um nada desprezível redesenho institucional e um reposicionamento de instituições não-autônomas diante do processo regulatório da educação superior brasileira.
Das 2.457 IES brasileiras 1.891 (77%) são Faculdades, 203 (8%) são Universidades, 322 (13%) são Centros Universitários e 40 (2%) são Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs). Destaque-se que o modelo Universitário predomina no setor público e que o modelo das Faculdades (instituições basicamente voltadas para o ensino de graduação e com pouco ou nenhum envolvimento com a pesquisa, a extensão e a pós-graduação stricto sensu) representa 88% das IES do setor privado. Percebe-se, portanto, que a educação superior brasileira é, em termos de Organização Acadêmica, principalmente não-Universitária.
Foi no setor privado que a redução no número de Faculdades ocorreu de forma dramática: de 1.933 Faculdades em 2019 para 1.752, em 2020. Ou seja, o modelo Faculdade do setor privado responde por uma perda de 181 instituições – maior, portanto, do que a perda total (151) acima destacada. Dito de outra forma, a perda total de IES só não foi maior porque o número de Centros Universitários cresceu significativamente e o das Universidades também teve um pequeno aumento.
Todas as regiões registraram perdas de Faculdades. O que se infere a partir dos dados é que também há uma significativa substituição de Faculdades por Centros Universitários em todas as regiões do país, o que traz à tona a pergunta que não quer calar: como explicar que Centros Universitários privados cresçam enquanto as Faculdades do mesmo setor fecham as suas portas?
Os Centros Universitários, diferentemente das Faculdades, têm autonomia para abrir cursos e vagas (exceto nos poucos casos em que há proibição específica – Medicina, Odontologia, Enfermagem, Psicologia e Direito – sem precisar de autorização do órgão regulador. Ou seja, a autonomia em questão se confunde com desregulação. Como os Centros Universitários são na sua quase totalidade instituições privadas, a mudança de Organização Acadêmica das Faculdades, transformando-as em Centros Universitários, se traduz, na prática, em concessão pelo MEC de carta branca para uma atividade educacional bem mais livre, leve e solta do que a observada nas Faculdades privadas com fins lucrativos.
Fica claro que, diante da política em vigor, que facilita a transformação de Organização Acadêmica, de Faculdade para Centro Universitário e, também, surpreendentemente, de Universidade para Centro Universitário, o país enfatiza a sua predileção não por Universidades autônomas, mas por Faculdades, que, ligeiramente maquiadas, se tornam livres do processo regulatório.
Essa desregulação ou regulação blasé traz como consequência direta não só a abdicação de um controle mais efetivo por parte do Estado sobre o processo de expansão da educação superior privada com fins lucrativos, mas também o total desvirtuamento do significado histórico da Autonomia Universitária.
Há hoje na esfera federal, especialmente nestes tempos recentes de vacas magras, uma clara percepção de que a insuficiência de recursos fragiliza e inviabiliza o exercício da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial assegurada pela Constituição.
O MEC tem controle efetivo tão somente sobre 16% do total das matrículas da educação superior. Como as demais matrículas (84%) estão em instituições consideradas autônomas (Universidades, Centros Universitários IFs e CEFETs), o poder regulatório sobre elas é praticamente nulo.
Percebe-se que, mesmo com menos anos de existência, os Centros Universitários ofertam vagas em quantidade muito superior às demais organizações acadêmicas. Diretamente associados ao frenético processo de privatização, não surpreende que das 5.831.277 vagas abertas pelos Centros Universitários, exatos 5.813.833, ou seja, a quase totalidade (99,7%), foram abertas no setor privado.
O Brasil da EAD é hoje a imagem espelhada da EAD privada, autônoma e livre de regulação por parte do Estado. Essa desregulação, destaco, vem sob o nome de um valor muito prezado pelas Universidades, com U maiúsculo, mundo afora: a autonomia.
Sejamos claros: não é por acaso que cresce a cada dia o número de Faculdades que buscam a autonomia, atribuída por legislação infraconstitucional aos Centros Universitários.
É claro que este tipo de mudança de Organização Acadêmica, que as evidências da avaliação mostram não ser exatamente um selo de qualidade acadêmica, ao livrar instituições privadas com fins lucrativos dos controles regulatórios, transforma esse tipo de autonomia num poderoso instrumento de favorecimento do comércio educacional.
Se já é chocante ver as escolhas de dirigentes pela comunidade universitária sendo cotidianamente atropeladas pelas autoridades governamentais, igualmente chocante é ver a Autonomia, no seu sentido historicamente reverenciado, sendo lançada na vala comum da desregulação.
Este coneúdo foi originalmente publicado no site Educa2022
* Dilvo Ristoff é especialista em avaliação e doutor em literatura pela University of Southern California, nos Estados Unidos. Foi diretor de Estatísticas e Avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diretor de Educação Básica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e diretor de Políticas e Programas da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Foi também reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul. É autor e coautor de inúmeros livros, entre eles, Universidade em foco − reflexões sobre a educação superior (Editora Insular, 1999), Neo-realismo e a crise da representação (Insular, 2003) e Construindo outra educação: tendências e desafios da educação superior (Insular, 2011). Atualmente ministra aulas e orienta dissertações no Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).