Entidades ligadas à UFSC divulgam nota de repúdio sobre negativa de aborto legal a criança em Santa Catarina

No documento, Instituto de Estudos de Gênero, Instituto de Memória e Direitos Humanos da UFSC e núcleos de pesquisa cobram que a legislação seja cumprida, prestam solidariedade à vítima e aos profissionais do HU

Organizações divulgaram uma nota em que reiteram a importância do respeito à legislação brasileira pelo campo jurídico no caso do direito ao aborto legal após caso envolvendo criança na Grande Florianópolis ganhar repercussão nacional, depois de publicação de reportagem do Intercept Brasil. O documento é assinado pelo Instituto de Estudos de Gênero, Instituto de Memória e Direitos Humanos da UFSC e núcleos de pesquisa.

Leia a a nota na íntegra:

“Nós, Instituto de Estudos de Gênero, Instituto de Memória e Direitos Humanos da UFSC e núcleos de pesquisa abaixo assinados, manifestamos nosso repúdio pela decisão tomada por autoridades jurídicas catarinenses, diante do estarrecedor caso da menina de 11 anos grávida de um estupro, impedida de abortar, como lhe assegura a legislação brasileira.

A juíza Joanna Ribeiro Zimmer e a promotora de justiça Mirela Dutra Alberton, durante audiência realizada em junho de 2022, induziram a criança a continuar com a gestação, negando o direito legal ao aborto seguro, o que se caracteriza como um nefasto desrespeito ao direito fundamental à vida das meninas, especialmente daquelas que se encontram em extrema vulnerabilidade social.

No Brasil, o Código Penal (CPB 1940, art. 127 e 128) limita seus permissivos legais somente aos casos de estupro, risco de vida da gestante e, desde 2012 através de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), para os casos de anencefalia.

O primeiro serviço de aborto legal foi criado em 1989 e a primeira regulamentação pelo Ministério da Saúde, norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que estimulava e normatizava a estruturação dos serviços, é de 1999. Mas somente em 2006 é que a prática foi regulamentada pelo Ministério da Saúde, resultando posteriormente na Norma Técnica para a Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual (2015). Lembramos que a Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher (Cismu) e a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) se articularam com pesquisadoras e ativistas feministas e com hospitais públicos contribuindo diretamente para a implantação dos serviços de aborto legal. Destacamos em Florianópolis a contribuição da Rede de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (Raivs).

Pôde-se observar, já naquela época, o apoio também do campo judicial, com advogados, defensores públicos, promotores e juízes que passaram a assegurar às mulheres a realização do aborto legal.

Contudo, mesmo diante da legislação vigente e de suas regulamentações, têm-se negado sistematicamente o direito às mulheres e às meninas em decidirem sobre os seus próprios corpos, restringindo sua autonomia reprodutiva.

Em nosso país, a liberdade individual em decidir por uma gravidez indesejada, mesmo prevista no Código Penal Brasileiro e nas Normas Técnicas do Ministério da Saúde, é negada com base em concepções e valores religiosos, éticos e/ou morais, impostos social e culturalmente por agentes públicos que se recusam a realizar o procedimento de interrupção de gravidez sob o argumento de “objeção de consciência”. Mais recentemente, como no caso de Santa Catarina, outros argumentos estão sendo utilizados para impedir o procedimento de aborto, como o da “adoção” de crianças resultantes de situações de estupro e violência sexual.

Na cena pública atual, no Governo Bolsonaro, posições extremamente conservadoras têm colocado em risco importantes avanços no campo dos direitos humanos das meninas e mulheres. Posicionamentos que se articulam através de discursos morais e religiosos, fortalecidos especialmente com a política do ministério da família, então comandado por Damares Alves, em que prevalece na aplicação de políticas públicas um conceito de família tradicional, patriarcal e heterossexual, na qual as mulheres desaparecem enquanto sujeito político e autônomo.

Reiteramos a importância do respeito à legislação brasileira pelo campo jurídico brasileiro. O respeito à lei se torna ainda mais urgente diante da dupla autorização legal para o aborto: uma gestação resultante de estupro e do grave risco que ela corre de morrer durante a gravidez ou no parto por possuir um corpo ainda muito jovem. A decisão judicial, em prol da manutenção da gestação, não levou em conta a defesa da vida da menina, essa sim um ser social e um sujeito jurídico pleno, com direitos estabelecidos em lei.

Diante da flagrante ilegalidade desta decisão, esperamos que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decida pela efetivação do direito ao aborto o mais rápido possível, colocando fim a uma situação de risco à vida da menina e que causa imenso sofrimento físico e psíquico para ela e sua família.

Dessa forma, nos solidarizamos com a menina de 11 anos, sua mãe e seus familiares e também com a equipe de profissionais de saúde do Hospital Universitário da UFSC – que por anos presta um serviço de excelência na realização de aborto nos casos previstos em lei”.

Assinaram até as 15hs de 21/06/2022:
IEG – Instituto de Estudos de Gênero (UFSC)
IMDH – Instituto de Memória e Direitos Humanos (UFSC)
NIGS – Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (UFSC)
GCS – Grupo de pesquisa gênero, corpo e sexualidade (UFRN)
ABACATEIRO – Instituto de Pesquisa (Florianópolis)
AFRODITE – Laboratório Interdisicplinar de ensino, pesquisa e extensão em sexualidades (UFSC)
ALTERITAS (UFSC)
ALTERGEN- Alteridade, Gênero e Performances nas Comunicações e Artes (USP)
ARANGU – Laboratório de Estudos em Etnologia, Educação e Biodiversidades (UFSC)
Associação Brasileira de Agroecologia
Comitês de Gênero e Sexualidade e Direitos Humanos – ABA – Associação Brasileira de Antropologia
EDEN – Laboratório de pesquisa e tecnologia em educação em saúde e enfermagem (UFSC)
GESECS – Grupo de estudos em Gênero, Sexualidades e Interseccionalidades (UFAM)
JUSFEMINA – Grupo de pesquisa e extensão em Gênero, Direito e Políticas para a Igualdade (UFBA)
IELLA – Instituto Ella Criações Educativas
LASUB – Laboratório de Arte e Subjetividades (UFSM)
LEGH – Laboratório de Estudos de Gênero e História (UFSC)
NAVI – Núcleo de Antropologia Audio-visual (UFSC)
NEG – Nucleo de Estudos de Gênero (UFPR)
NEIM – Gênero, Arte e Cultura (UFBA)
NUER – Núcleo de Estudos de Relações Interétnicas (UFSC)
NUGAL (UFSC)
NUGEMS (UFSC)
NUSSERGE – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Saúde, Sexualidades e Relações de Gênero (UFSC)
Núcleo de Pesquisa Flora Tristán: Representações, Conflitos e Direitos (UnB)
Rede Não Cala (USP)
REMULMANA – Rede de Mulheres das Marés e das Águas dos Manguezais Amazônicos
SER-TÃO – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (UFG)
TRANSES – Núcleo de Antropologia do Contemporâneo(UFSC)
TUNA – Gênero, educação e diferenças (Unipampa)
XIQUE-XIQUE – Grupo de pesquisa em gênero e sexualidade (UFS)

Fonte: Jornal da Ciência