No Nordeste, a letalidade de crianças foi 2,5 vezes maior que no Sudeste
Nos municípios mais pobres do Brasil, crianças internadas por covid-19 tiveram quase quatro vezes mais chance de morrer que as moradoras dos municípios de maior PIB per capita. Entre os adolescentes, o risco foi quase o dobro. As disparidades também se reproduzem entre as regiões do país: no Nordeste, a letalidade de crianças foi 2,5 vezes maior que no Sudeste. Esses são alguns dos resultados de uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Conduzido pela pesquisadora Caroline Fabrin, durante seu mestrado, e orientado pela professora e epidemiologista Alexandra Boing, o trabalho revelou como as desigualdades socioeconômicas impactaram o cuidado hospitalar e a letalidade de crianças e adolescentes internados por covid-19 no Brasil entre março de 2020 e dezembro de 2021. Para isso, valeu-se de dados de mais de 22 mil pessoas, de 0 a 18 anos, retirados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), que registra hospitalizações e óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em todo o território brasileiro e cujo preenchimento é obrigatório para serviços de saúde públicos e privados.
Além de demonstrar como as disparidades econômicas e regionais associaram-se à taxa de óbitos de crianças e adolescentes hospitalizados por covid-19, o estudo também mostrou discrepâncias na realização de testes e exames. Tomografias foram duas vezes mais comuns nos municípios do maior decil de PIB per capita do que nos municípios mais pobres. Tiveram, também, quase o dobro da frequência entre crianças da região Sul, na comparação com as do Norte do país. Coletas de amostra biológica para diagnóstico e raios X também foram mais recorrentes nos locais de maior renda. Os achados mantiveram-se consistentes durante as duas ondas de covid-19 analisadas.
Tabela reúne dados sobre acesso a coletas de amostra biológica, raios X e tomografias, uso de suporte ventilatório, internações em UTI e letalidade de crianças e adolescentes internados por covid-19, segundo os decis do PIB dos municípios e as macrorregiões
Os resultados mostram como a doença impactou a população de maneira desigual e expõem os contrastes entre regiões e municípios brasileiros. A quantidade de equipamentos e profissionais especializados nas áreas mais ricas explica apenas parte dos resultados. Caroline exemplifica outros elementos que influenciam nessa questão: “É o acúmulo de múltiplos fatores que afetam negativamente a vida dos residentes de locais em desvantagem social, como piores condições de vida e trabalho, menor acesso a serviços de saúde e maior prevalência de doenças crônicas. Moradias superlotadas, onde o distanciamento físico é inviável, situações de trabalho que impossibilitam o trabalho remoto. Essas condições podem aumentar a exposição ao vírus e sua consequente disseminação em uma população que normalmente já tem uma carga maior de doenças crônicas. Então acaba tudo isso sendo um catalisador para os casos mais graves”.
De acordo com as pesquisadoras, o trabalho traz luz à característica sindêmica da covid-19. A sindemia é uma situação em que duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas doenças. Neologismo que combina “sinergia” e “epidemia”, o termo foi cunhado pelo antropólogo Merrill Singer na década de 1990. Em entrevista à BBC News Mundo, Singer explica que “o impacto dessa interação também é facilitado pelas condições sociais e ambientais que, de alguma forma, aproximam essas duas doenças ou tornam a população mais vulnerável ao seu impacto”.
É o que acontece no caso da covid-19. Seus desfechos mais negativos são modulados pelas desigualdades pré-existentes, e suas repercussões nas sociedades também ampliam as injustiças sociais. “Essa característica da covid como uma sindemia é o produto de uma interação entre condições clínicas pré-existentes e fatores sociais e econômicos, toda essa questão que contextualizei antes, que envolve situações de trabalho, que não permitem trabalho remoto, residências superlotadas. Acaba que nessas populações a pandemia é enfrentada em um contexto de uma sindemia”, afirma Caroline.
Todas essas relações que tornam determinados grupos mais vulneráveis precisam ser levadas em conta pelo Estado. “É importante considerar as características de uma população na hora de um enfrentamento de crise. Então, as populações que já estão em desvantagem previamente devem ser priorizadas nos momentos de crise. E não foi o que aconteceu no país no enfrentamento da pandemia. As ações deveriam ser voltadas de acordo com as necessidades de cada local para o enfrentamento”, salienta a pesquisadora.
O estudo pode contribuir para planos de enfrentamento de novas ondas de covid-19 ou mesmo de futuras epidemias ou pandemias, “para que se tenha esse olhar voltado para as necessidades de cada local, para que se tenha uma política mais coordenada, para que a resposta não seja heterogênea, de acordo com a capacidade de cada município ou de cada estado, para que ela seja homogênea e leve em consideração as necessidades locais, as necessidades de cada local para atender a uma crise sanitária. Geralmente, a rede de saúde não é bem distribuída, e isso precisa ser levado em consideração”, reforça Caroline.
O olhar específico para a situação de crianças e adolescentes durante a pandemia da covid-19 foi outra contribuição do trabalho. Caroline conta que a motivação para a pesquisa surgiu justamente de uma percepção da baixa quantidade de estudos que investigassem os impactos da doença nesse público. “Como a análise de dados em criança é muito pequena, surgiu essa necessidade de entender o que estava acontecendo com as crianças. Havia muitas publicações relacionadas à covid em adultos e idosos, porém as crianças eram um grupo sobre o qual poucas publicações surgiam”, comenta.
Segundo ela, a maioria dos artigos encontrados na literatura especializada buscava esclarecer as características clínicas da doença, os achados em exames e fatores de risco relacionados a comorbidades prévias, bem como descrever as taxas de incidência e mortalidade. “Poucos abordaram a associação entre desigualdade socioeconômica e os desfechos da covid-19 na população pediátrica. Além disso, outros estudos sobre desigualdades analisaram apenas recortes raciais.”
Caroline ressalta, ainda, que os resultados de sua pesquisa reforçam a importância de se planejar ações de saúde voltadas especificamente a crianças e adolescentes, “porque além de sofrerem com as questões da doença em si, eles também sofrem os efeitos secundários da covid”.
Fonte: Notícias da UFSC