Por Fábio Lopes da Silva*
Atualmente, dirijo um dos centros de ensino da Universidade Federal de Santa Catarina. Coisa grande: cerca de duas mil e quinhentas pessoas, sendo umas trezentas delas professores e professoras com doutorado, além de todas as outras láureas e diplomas necessários para o exercício da vida acadêmica. Contudo, desde que a pandemia da COVID-19 chegou ao Brasil, os nossos prédios andam às moscas. Quem sai da Trindade – vibrante e plena de vida – e entra no campus tem a sensação de que cruzou os limites de uma área atingida por um acidente nuclear. Chernobyl é aqui: as almas e seus respectivos corpos subitamente desaparecem, dando lugar a uma terra desolada, um conjunto de instalações e vias abandonadas a si mesmas, como se se tratasse não da mais importante instituição de ensino superior do estado mas de uma cidade cenográfica que houvesse servido a filmagens há muito tempo concluídas. Afora a presença de meia dúzia de gatos pingados e daqueles a quem eu chamo de casta dos intocáveis – vigilantes, porteiros, faxineiros e demais trabalhadores terceirizados –, tudo é silêncio e solidão.
O fechamento completo da Universidade, em março de 2020, foi um ato mais do que justificado. Mas o tempo passou, a vacinação avançou, e aprendemos a conviver com o vírus, que, a exemplo do pequeno demônio que causa a influenza, provavelmente permanecerá entre nós per omnia secula seculorum. As condições sanitárias vigentes talvez ainda não permitam um retorno pleno às atividades presenciais de ensino. Afinal, não é tarefa simples enfiar milhares de jovens – na flor de seus pecados, como diria o pai de Hamlet – em salas de aula por horas intermináveis. Mas não há nenhuma razão para que ao menos os professores e técnicos continuem sem frequentar seus locais de trabalho.
A luz vermelha se acendeu para a UFSC ainda nos primeiros meses de circulação do novo coronavírus. Batemos cabeça por quase meio ano até que as atividades de ensino sob a forma remota fossem deflagradas. Essa lentidão parecerá ainda mais imperdoável se se levar em conta que universidades privadas e mesmo outras universidades públicas precisaram de apenas algumas semanas para oferecer disciplinas a distância aos discentes, sem falar no fato de que, como os historiadores bem sabem, a primeira coisa que se fazia sob a noite sem estrelas dos guetos nazistas era improvisar uma escola que atendesse as crianças e jovens confinados. As justificativas dadas para o atraso na retomada das atividades de ensino na UFSC não convencem minimamente. A mais recorrente era a de que alunos pobres não dispunham de equipamentos ou sinal de internet para acompanhar as aulas remotas, e era preciso suprir essas lacunas antes de reiniciar o semestre letivo, sob pena de nos tornarmos cúmplices de um indesculpável gesto de exclusão. Ora, o que esse surto de consideração pelos desassistidos ocultava era o fato de que a universidade brasileira sempre foi altamente excludente. Multidões de jovens nem sequer sonham em poder ingressar em nossa instituição. Isso era verdade antes da pandemia e continuará a sê-lo no minuto seguinte ao seu fim. Temo que não estaremos tão prontos a manter acesa a chama da intransigente democratização radical do ensino superior público quando tudo isso passar. O mais provável é que – como no retrato inclemente do pós-guerra oferecido por Scott Fitzgerald em The Great Gatsby – concluamos a travessia de uma grande crise não com ampliação da consciência social mas mergulhados novamente na frivolidade e indiferença de costume. Voltaremos à boa e velha vaca fria, no máximo vagamente condoídos com o destino dos mais vulneráveis.
Penso que a vacilação e a inoperância da UFSC na pandemia sejam o sintoma mais visível e a última flor de um problema mais profundo, duradouro e danoso: a recusa da instituição e de seus membros em assumir a liderança intelectual em Florianópolis e no estado; a nossa incapacidade de compreender que a vida intelectual é uma experiência pública e política, não uma carreira. Explico.
Não é que os profissionais da UFSC não trabalhem. A questão é como e no que trabalham. A Universidade – especialmente nas Humanidades – converteu-se em uma estranha máquina em que o conhecimento está dividido em uma miríade de áreas de especialidade, cada qual com seu próprio jargão, suas próprias premissas, seus próprios critérios de avaliação. O fechamento dessas áreas sobre si mesmas é radical: em nenhum momento da cadeia produtiva, o trabalho realizado é seriamente submetido ao crivo externo, quem dirá à avaliação dos pagadores de impostos, que, no frigir dos ovos, financiam a instituição. Sob tais regras de funcionamento, é praticamente impossível que o conhecimento não se transforme em uma burocracia que muito mais se reproduz do que se dedica à inovação e ao risco. E é quase certo que as pessoas protegidas por essa redoma parem de se preocupar com a legitimidade do que fazem e comecem a achar que pertencem a uma comunidade de eleitos que não deve satisfação a ninguém e que, de resto, como os antigos monarcas, está ligada à sua posição por alguma espécie de direito divino.
A UFSC falhou miseravelmente na tarefa de guiar os jovens sob sua responsabilidade para fora do labirinto da maior crise sanitária e econômica do século 21. Deixou-os na chuva no pior momento da pandemia, quando eles mais precisavam de um norte. Mas a falha, suponho, é mais grave e mais antiga: a UFSC parece cada vez menos apta a entender que é – ou deveria ser – a única elite intelectual disponível em Florianópolis e Santa Catarina. Se a vida cultural em nossa cidade e nosso estado é pobre – e não tenhamos dúvida de que é esse mesmo o caso –, a culpa não é do conservadorismo e do provincianismo dos catarinenses ou do tolo orgulho dos descendentes de imigrantes a respeito de suas raízes europeias (não nos esqueçamos de que o suposto conservadorismo catarinense elegeu mais ou menos recentemente prefeitos como Andrino e Grando em Florianópolis, Carlito Merss em Joinville e Décio Lima em Blumenau; não nos esqueçamos tampouco de que o suposto conservadorismo catarinense deu a maioria de seus votos a Brizola na campanha presidencial de 1989 e, mais tarde, a ninguém menos do que Lula). A culpa é sobretudo da UFSC, que, sentada sobre uma imensa e poderosa estrutura e armada de uma marca que, apesar de tudo, é respeitada a ponto de abrir quase todas as portas na Ilha e alhures, mostra-se crescentemente incapaz de se perguntar qual é o seu lugar entre as coisas.
*Atual diretor do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC.