Por Edmundo Lima de Arruda Jr.
Outro dia um amigo querido revelou-me, com sinceridade surpreendente, o que eu já percebia e não ousava expressar: a sensação de envelhecimento que a pandemia vem causando.
Claro. Depois de certa idade, há momentos em que os espelhos não nos traem mais, atualizando a imagem que temos de nós mesmos. Sim. Espelhos permitem representar alguns anos a menos que a idade real. Também podem produzir uma aceleração do tempo, dependendo do nível da autoestima e de outros fatores externos.
Normal ver-se refletido o novo corte no cabelo. Os resultados da ginástica com personal training. A nova camisa presenteada. A cor do rosto corado após uma noite bem dormida. Mas são muitos nossos espelhos fora do banheiro.
Numa de suas passagens em “Ficções”, Jorge Luis Borges afirma odiar os espelhos e as cópulas, pois ambos reproduzem a espécie humana. Mas o olhar projeta pré-compreensões e elas estão lá, ressignificando a memória digital de cada indivíduo em seu estado d’alma.
Cópulas reproduzem desproporcionalmente o prazer do gozo e do orgasmo, muito menos que filhos. Filhos podemos contar nos dedos das mãos, ou de uma delas. O prazer sexual carnal para a maioria das pessoas é como o número de ovulações. Acompanha o ciclo hormonal. Mulheres, por regra, literalmente, menstruam entre 360 a 420 vezes entre 15 e 45 anos. Uma vida ativa sexualmente talvez permita multiplicar esses números por dez vezes, imaginando duas relações por semana, como média otimista, ao longo de cinco décadas, talvez seis, com muita sorte, criatividade e estimulantes eróticos.
Espelhos representam uma representação prévia, sob variadas formas estéticas nas quais a dicotomia belo/não belo se relativiza tanto em quem se vê projetado nos múltiplos espelhos da vida, como nos juízos de terceiros. No singular e no plural, espelhos ampliam labirintos e simulacros do viver, mas também podem proporcionar encontros e saídas de nossas lidas sociais no que elas enfrentam no côncavo e no convexo. Volto ao que preocupa meu amigo. A nítida percepção da aceleração da velhice por força da pandemia.
O vírus da Covid-19 não pode ser reduzido a um evento revelador do estertor da forma capitalista e seu cosmos organizacional. Giorgio Agamben e Slavo Zïzëk esforçaram-se em relacionar no veneno algum antídoto claro e efetivo. Não creio ser evidente. Crises oportunizam alternativas. O problema é como pensá-las no entorpecimento geral.
A toxidade do pandemônio político amplia-se na pandemia. De fato estamos diante de uma letalidade silenciosa, incomensurável. Ao lado dos mais de três milhões de mortos de Covid no mundo, há o crescimento exponencial de sequelados, física e mentalmente. Precisaremos de décadas para pesquisar as colateralidades geradas na pandemia entre infectados pelo Covid e não infectados, mas contaminados pelo ambiente da contaminação.
Somente psicopatas podem escapar da amputação emocional causada por um vírus com o poder de frear setores produtivos e acelerar outros, desprogramando vidas e sonhos; confinando, tratando e condenando, seletivamente, bilhões de habitantes do planeta; enfim, causando stress, angústia e imensa sensação de esmagamento afetivo.
Zygmunt Bauman avançava na idéia de Marx no Manifesto. Ao “tudo que é sagrado será profanado”, Bauman deriva dezenas de livros sobre os estados líquidos. Do Estado aos indivíduos. Da modernidade ao amor. Da pós-modernidade ao habitus virtual. Mas talvez seja o caso de uma ultrapassagem da condição nua e líquida do Homem a uma condição de indumentária gasosa, alimentando a fluidez de humanos desprovidos de vínculos de Humanidade e solidariedade, minados no tempo mórbido de um algoz chamado tanatos, disposto a trocar o estado de direito por ditadorezinhos medíocres.
Quando meu amigo me diz que envelheceu muitos anos em pouco mais de um ano de pandemia, me permite anuir com algo comum. Embora percebida assimetricamente por milhões de seres humanos dispersos em faixas etárias diferenciadas (e mergulhados em diversas formas inconscientes de encarar esse convite forçado a naturalizar ou a demonizar a morte), a peste é de todos.
Essa peste do século XXI potencializa uma morte confusa na biruta do aleatório a alimentar um absurdo na sua razoabilidade temporal mínima. De fato. Em um ano que nos faz pensar nos felizes anos velhos, aproveitando Marcelo Paiva, sim, adoecemos. A patologia dos males civilizatórios de hoje não permite, face à galopante regressão social e cognitiva, diagnósticos confiáveis. O abraço nas forças mais primitivas condena toda racionalização no esforço de sair do caos.
Até o espelho do banheiro torna-se um carrasco. Registro de rugas espirituais e dos nossos malvados mortos vivos. O necessário isolamento é norma e esta pressupõe a transgressão para estar viva. No banheiro, as portas se fecham para muitos outros espelhos. Sublimar sofrimentos sempre implica em juros e multas. A moratória induz à somatização. Ambas produzem os sequelados em graus diversos e a vivência de sociabilidades incompletas. Ou da completude das drogadicções. Entre elas, aquela fornecida pela própria sociedade, quando esta é a própria droga (Walter Benjamin previu essa droga maior). Agora uma droga barata e letal da desinformação geradora de inseguranças e da paralisia da inteligência. Enlouquecedora. Sorrateiramente mortífera.
O que fazer para sair do espelho do banheiro e enfrentar outros espelhos, mirando o pós-isolamento? Eis uma questão à qual outras podem ser colocadas.
Como revitalizar-se após a pandemia, refazendo energias emancipatórias para negar a direção da hegemonia neoliberal vigente e, ao mesmo tempo, ir a fundo na crítica ao que é imanente à realização do Capital e das formas capitalistas? De que maneira vamos lamber nossas feridas e tratar os ossos expostos decorrentes de uma década perdida em menos de dois anos?
Amadurecimento pode ter ou não algo a ver com envelhecimento. Não deveria pressupor adoecimento. Então sanar traumas de guerra é tarefa difícil e longa. Quase impossível. Mas como não tentar o impossível para colher o possível?
Edmundo Lima de Arruda Jr. é professor aposentado do CCJ/UFSC.