Desafio ainda é promover equidade de gênero e ampliar presença feminina em cargos de gestão, mostra a Folha
Com o aumento do número de pesquisadoras e o acúmulo de experiência, a pesquisa científica brasileira está entrando na “década das mulheres”. A análise é da professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora adjunta de Ciências Humanas e Sociais da Fapesp, Ana Almeida. E o fenômeno tem sido evidenciado por um tema: a pandemia do coronavírus.
Do mapeamento do genoma do vírus até o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19, passando pela elaboração de testes para detectar a infecção e a comunicação sobre o tema, a força de trabalho feminino tem se destacado.
Junto a outros fatores, como o desempenho das meninas na escola, o exemplo de tantas mulheres no meio científico, especialmente num tema com tanto destaque como a pandemia, pode culminar num crescimento relevante do número de novas pesquisadoras no futuro, afirma Almeida.
“Se as meninas são bem-sucedidas na escola, vai haver um número maior de mulheres chegando na universidade, na pós-graduação e na pesquisa. Essa bola de neve já é uma realidade incontornável.” Chegarão à academia mulheres bem preparadas e ambiciosas, diz a professora. Há, contudo, um desafio a superar: garantir que as instituições acadêmicas não ofereçam obstáculos ao avanço de mulheres na carreira científica.
Já é possível observar uma igualdade numérica entre homens e mulheres na graduação e na pós, segundo Soraya Smaili. Ela é a primeira reitora mulher da Unifesp, uma instituição que já tem quase 90 anos. A maior questão, ela diz, é ampliar a presença das mulheres em postos de gestão, desde a coordenação de laboratórios até as reitorias.
“A gente precisa ocupar mais lugares nos comitês de decisão, mas também sempre faço a ressalva: não basta só ser mulher”, afirma Smaili. É necessário pensar, de fato, políticas para subverter as desigualdades e promover a inclusão de grupos diversos — de gênero, raça ou origem social.
“Só o fato de ter mais mulheres [pesquisadoras] no sistema já pressiona, mas se isso for associado a políticas públicas, a mudança vem mais rápido. Se a gente pode ir mais rápido, por que esperar décadas para atingir um objetivo?”, questiona a reitora.
Diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP, Maria Cássia Mendes Corrêa lidera uma equipe com presença de destaque de mulheres. “A força feminina no âmbito da pesquisa nessa pandemia é muito expressiva”, afirma Corrêa. Ainda assim, falta representação política em comitês, secretariados e ministérios. “Isso precisa ser redimensionado e teria impacto em várias linhas de pesquisa.”
Foi no IMT, há um ano, que uma dupla de pesquisadoras, Ester Sabino, então diretora, e Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda, sequenciaram o genoma do coronavírus 48 horas depois da confirmação do primeiro caso no país.
Apesar dos avanços dos últimos anos, ainda falta reconhecimento da pesquisa da mulher, afirma a biomédica Ticiane Henriques Santa Rita, do núcleo de Pesquisa & Desenvolvimento do Grupo Sabin. “Quanto mais mulheres forem reconhecidas, mais outras serão atraídas para a ciência.” Não é incomum, ela diz, que os resultados de homem tenham melhor visibilidade que os de mulheres. Equidade salarial e fim de situações de assédio são outras questões a serem mudadas.
A microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência Natalia Pasternak percebe que a presença feminina na pesquisa sobre a Covid-19 e na mídia já tem servido de inspiração para as futuras cientistas. “Quando o jovem se vê representado, ele entende que tem espaço naquela profissão. É muito importante que meninas vejam mulheres nesse espaço para verem que elas também podem ocupar esse espaço.”
E, para além da questão de justiça social, promover a diversidade na pesquisa científica traz benefícios aos resultados, afirma Almeida. “São necessários olhares diferentes sobre uma mesma questão de pesquisa. Acumular outras visões, colocar as pessoas em contato e permitir que interajam entre si é uma condição para que um assunto seja melhor estudado.”
Pandemia tem impacto na produção de mulheres
Com o aumento da carga doméstica — atividade ainda fortemente atribuída a elas —, sobra menos tempo para a dedicação aos objetos de pesquisa. É através das publicações científicas que os pesquisadores transmitem à comunidade suas descobertas. Com elas, os autores podem obter reconhecimento de seus pares no campo de estudo.
“A mulher cientista foi muito afetada pela pandemia, e não tem nenhum movimento que facilite isso”, afirma Ana Marcia de Sá Guimarães, professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Um efeito direto, ela diz, foi o menor número de publicações de autoras mulheres.
Soraya Smaili, reitora da Unifesp, concorda. “É evidente que a sobrecarga, os filhos em casa, ter que cuidar da casa, fazer mais coisas na parte da vida pessoal, conciliando com a vida intelectual, isso teve um efeito negativo na pesquisa das mulheres.”
Segundo ela, a pandemia vai impactar também as publicações que mostram o resultado de pesquisas de longo prazo. Com isso, após um ano ou dois nessa situação, os impactos serão sentidos por muito mais tempo.
Conciliar maternidade se torna um desafio
Conciliar a maternidade se torna um desafio a mais para as mulheres envolvidas em um momento tão importante para a ciência, como o combate à pandemia.
Mãe de quatro filhos, Cristiane Guzzo, professora do departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, afirma que falta contextualização das condições dessas mulheres em relação a outros pesquisadores.
“O que esperam de você, mulher e mãe, é equivalente ao que esperam de um homem que não passa por isso. Eu trabalhei em todas as minhas licenças maternidades.” Uma eventual baixa do número de publicações não é ponderada com a maternidade, ela afirma. Não há reconhecimento das questões fisiológicas e emocionais e das obrigações impostas à maternidade.
Objetivo é eliminar gargalos, diz professora
O monitoramento de indicadores é uma importante ferramenta para promover a equidade de gênero na pesquisa, segundo Ana Almeida, professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora adjunta de Ciências Humanas e Sociais da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Entre 2010 e 2019, a Fapesp apoiou 61.999 projetos de pesquisa, e apenas 43% deles estavam sob responsabilidade de pesquisadoras mulheres. “Essa diferença tem que ser objeto de estudo para sabermos por que ela acontece.” Uma possibilidade, ela afirma, é a representação desproporcional em áreas específicas.
Um fator importante a ser observado na tentativa de medir a equidade de gênero, de acordo com Almeida, é a taxa de sucesso das solicitações. Entre os projetos submetidos por mulheres, 52% deles foram aceitos. Para homens, o número é 54%. Esse indicador, segundo ela, é estável nos últimos 10 anos, mesmo com o aumento do número de solicitações de mulheres.
Leia na íntegra: Folha de S. Paulo