Por Gílson Geraldino Silva Jr.
Em 1950 o Brasil estava confortável em relação à Alemanha (dividida em oriental e ocidental) e ao Japão, ambos arrasados pelos efeitos da Segunda Guerra, e à China, devastada pelas revoluções internas. Em 1955, a Coreia do Sul tentava sair dos escombros dos conflitos que dividiram aquela Península. Em 2020 estes quatro países estão melhores que o Brasil em todos os quesitos econômicos e tecnológicos, como ambiente de negócios, segundo o Banco Mundial, capacidade de inovar, segundo o Global Innovation Index da World Trade Organization (GII-WIPO), PIB e PIB per capita medidos pela paridade poder de compra, além multinacionais espalhadas pelo mundo, algumas instaladas no Brasil – exemplos bem conhecidos são VW e Siemens da Alemanha, Honda, Toyota, Mitsubishi e Sony do Japão, Samsung e Hyundai da Coréia do Sul, e Huawei e Chery da China. Depois das bem sucedidas missões no “lado escuro” da lua, em fevereiro de 2021 a China chegou em Marte. O Japão já conseguiu pousar artefatos em cometas e remetê-los de volta à Terra. O Brasil segue debatendo o que fazer com Alcântara (MA).
Está bastante claro que países devastados há 70 anos conseguiram se mobilizar e se tornaram potências tecnológicas prósperas. O Brasil não. Está bastante claro também que os esforços dos últimos 70 anos não foram suficientes para impulsionar o país no cenário científico e tecnológico mundial. Não será surpresa se nos próximos 70 anos o Brasil for ultrapassado por países africanos, como a Nigéria, em PIB, população, ambiente de negócios e inovação. Explico.
Nos últimos 20 anos, o sistema de pós-graduação brasileiro se expandiu muito mais rápido que o orçamento para a área. Segundo a CAPES,o Brasil terminou 2020 com 4642 programas de pós-graduação credenciados que oferecem 7064 cursos, sendo 3694 mestrados acadêmicos, 2444 doutorados acadêmicos, 868 mestrados profissionais, e 58 doutorados profissionais. Destes 4600 programas cerca de 3000 (65%) tem conceitos 4 ou inferior. Somente 1200 (26%) são cursos de doutorado com conceito 5 ou superior.
O sistema de avaliação baseado quase que exclusivamente em publicações e editais para projetos individuais, como os universais e de bolsas de produtividade, incentiva, premia e financia a compulsão por publicações, o “salami science”, o individualismo. Pulveriza parcos recursos de valores defasados para financiar o interesse pessoal do pesquisador, e não em montantes substanciais para financiar pesquisas de grupos consolidados nas 5 áreas de prioridade nacional, incluindo humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento destas áreas, conforme portaria 1122/2020 do MCTI: i) Estratégicas (Espacial, Nuclear, Cibernética, Segurança Pública e de Fronteira), ii) Habilitadoras (Inteligência Artificial, Internet das Coisas, Materiais Avançados, Biotecnologia, Nanotecnologia) , iii) de Produção (Indústria, Agronegócio, Comunicações, Infraestrutura, Serviços), iv) para Desenvolvimento Sustentável (Energias Renováveis, Bioeconomia, Tratamento e Reciclagem de Resíduos Sólidos, Tratamento de Poluição, Monitoramento, prevenção e recuperação de desastres naturais e ambientais, Preservação Ambiental), e v) para Qualidade de Vida (Saúde, Saneamento Básico, Segurança Hídrica, Tecnologias Assistivas).
A CAPES e o CNPq já perceberam o colapso do sistema e lançaram editais piloto (que deveriam ser os principais), como as chamadas 27/2018 e 15/2019 da CAPES e a 25/2020 do CNPq, em que a pesquisa do grupo gira em torno da agenda do programa e envolve os alunos de pós-graduação, com foco nas prioridades nacionais. Estes recursos deveriam ser mais concentrados nos cursos de doutorado conceito 5 ou superior, por serem os mais consolidados, logo mais aptos a gerar resultados mais substanciais. Raciocínio equivalente para iniciação científica na graduação.
Seria importante também distinguir as instituições federais de ensino superior (IFES) das NÃO-IFES, sendo que as NÃO-IFES deveriam arcar com parcela substancial dos custos dos projetos – pelo menos 3/4 da verba do orçamento. O governo federal deveria priorizar recursos para as IFES e iniciar um processo de privatização das instituições de ensino superior privadas, que há muito recebem vultosas verbas públicas a ponto de algumas se tornarem financeiramente dependentes do Estado. Isso mesmo: privatizar o setor privado de ensino. Vale lembrar que bolsas de pesquisa para funcionários de NÃO-IFES significa complementação salarial paga pela união para quem não é servidor público federal.
Outro aspecto relevante é o excesso de poder discricionário por parte dos membros do comitê de área. É necessário impor limite às especificidades de cada área, que hoje são preponderantes. Uma forma de minimizar esta distorção é dar alta importância aos quesitos gerais do edital, atribuindo-lhes peso 8, e peso 2 aos quesitos específicos que constam nos longos e confusos anexos das chamadas. É também estranho o uso de métricas estrangeiras calculadas a partir de bases de dados que ninguém no Brasil é obrigado a participar. Outro vício que precisa ser revisto. Não faz sentido ficar adotando fator de impacto do JCR, fator h do google, citações em bases de dados americanas e européias como scopus, web of science e IDEAS-REPEC, considerando publicações em qualquer área (o que só faz sentido para programas interdisciplinares), quando deveriam considerar somente publicações na área. Estes indicadores talvez sejam bons para as sociedades de origem, que se estruturaram de forma a lhes dar sentido, onde há adesão desde sempre por parte de toda a comunidade científica daqueles países. Muitas destas iniciativas são privadas e podem ser extintas a qualquer tempo, como o ORKUT. As “big techs” estão sedo questionadas pelos reguladores americano e europeu por abuso de poder de mercado e falta de transparência. Rússia, Índia, China, Japão, Coréia do Sul, Reino Unido, Alemanha, EUA, etc, tem seus quesitos e métricas próprios. O Brasil também deveria ter os seus.
Tamanha fragilidade em ciência, tecnologia e inovação não é fruto do acaso. É resultado de décadas de pouca atenção com as grandes prioridades nacionais, de gastos bilionários com mega eventos esportivos que nada acrescentaram ao país, como a Copa 2014 e as Olimpíadas de 2016, e os bilionários esquemas de corrupção, entre eles o mensalão e o petrolão. As disputas políticas e midiáticas são sempre mais importantes que as prioridades nacionais, e os eleitos para governar preferem os holofotes que as ações, o que atrasa o relevante. Alguns chegam a correr atrás das emas para tentar medicá-las com cloroquina, sendo que deveriam estar correndo atrás de solução para os gargalos estruturais do país. Outros entregam ministérios para astronautas, que gerenciam orçamentos tão rarefeitos quanto a atmosfera lunar. Além disso, tem o compromisso secular dos governantes com a inépcia, com os holofotes da mídia e com as picuinhas da pequena política. Em algum momento trágico não muito distante o Brasil perceberá a falta que faz uma constelação própria de satélites.
Em suma, é preciso repensar a alocação de recursos para pesquisa, sob pena dos resultados continuarem insuficientes para colocar o Brasil em patamares realmente elevados de competitividade internacional. Os primeiros passos são i) elevar o orçamento, ii) priorizar o financiamento de projetos das IFES nas áreas prioritárias elencadas pelo MCTI, iii) limitar o poder discricionário dos comitês de área, iv) privatizar o setor privado de ensino superior.
Gílson Geraldino Silva Jr – Professor de Economia | UFSC