Por Waldir José Rampinelli
Enquanto estátuas de escravocratas são derrubadas de seus pedestais mundo a fora, em um verdadeiro revisionismo histórico, na cidade de Nova Veneza, no sul de Santa Catarina, ergue-se uma praça em homenagem ao imigrante italiano Natale Coral, para muitos um “bugreiro”, para tantos outros um chefe de vários massacres indígenas.
Os povos originários se espalhavam pelo litoral catarinense há cerca de 5 mil anos, quando as caravelas portuguesas tocaram terras brasileiras. De Paranaguá à Porto Alegre, os Xokleng viviam em paz com a floresta, tirando dela apenas o necessário para o seu sustento, a sua arte, o seu trabalho. Com o avanço da colonização europeia sobre suas terras, no final do século XIX, e sem terem para onde se refugiar, os indígenas passaram a assaltar as propriedades dos colonos ou atacá-los em seus locais de trabalho. Um verdadeiro gesto de auto defesa. A violência cresce mais ainda quando as companhias vendedoras de terrenos, juntamente com os governos provinciais, subsidiam grupos armados para uma verdadeira caçada aos índios, os legítimos usufrutuários destas plagas. Surge, então, a figura do “bugreiro”, profissão criada pelo capitalismo em expansão para afugentar ou matar os assim chamados “bugres”.
Sílvio Coelho dos Santos, antropólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, cuja tese de doutorado obtida na Universidade de São Paulo, em 1972, trata da dramática experiência dos Xokleng nestas terras, denuncia Natale Coral como “bugreiro”. Ele afirma que “no sul do Estado, Natal Coral, Maneco Ângelo e um tal Veríssimo, entre outros, tornaram-se famosos como líderes das “batidas” e pela violência com que assaltavam os acampamentos dos índios” (Ensaios oportunos, Florianópolis: Nova Letra, 2007, p. 75).
Coelho dos Santos coletou informações durante longos anos sobre as matanças de indígenas no Sul do Brasil, no mais das vezes promovidas pelas companhias de colonização com a finalidade de “limpar” a terra e vendê-la para os imigrantes chegados da Europa, que vinham em busca da riqueza imediata. Em um depoimento tomado do caboclo Ireno Pinheiro, morador da encosta da Serra Geral, transcreve ele: “O Martinho limpou a região até pros lados de Curitiba. Mas pro sul, pro Araranguá e fronteira com o Rio Grande, já tinha outros. Era o Natal Coral, o Maneco Ângelo, o Veríssimo.[…] Besteira foi o que fez o Natal Coral. Quando voltava de uma batida, trazia as orelhas dos índios na salmoura, só por riso. Mas depois os colonos só queriam pagar com a prova das orelhas, e ele se aborreceu, parou até que os índios já estavam ficando cada vez mais raros” (Ibidem, p. 118).
Quinto Baldessar (padre), nascido em Urussanga e criado no interior de Nova Veneza, analisa a doutrina e a mentalidade “de que o índio deveria ser eliminado a qualquer preço, devia ser apagada do mapa a sua presença. Ele era perigoso, prejudicial. Era impossível tolerá-lo” (Imigrantes – sua história, costumes e tradições. Brasília: mimeo, 1991, p. 174). Deste modo, Miguel Napole, que comandou a Companhia Metropolitana na venda de terras em Nova Veneza, contratou Natale Coral como agrimensor e, posteriormente, como chefe de caçadas aos indígenas, já que ele conhecia todas as linhas e todas as picadas de demarcação, desde Urussanga até Nova Veneza. O pagamento de cinquenta mil réis se daria por índio morto, mediante a orelha trazida.
Em um destes ataques, comandado por Natale Coral no interior de Urussanga, o massacre foi tão grande que rendeu 62 orelhas cortadas, trazidas dentro de uma manga de camisa com o punho amarrado e apresentadas ao chefe Miguel Napole que as fez enterrarem imediatamente, pois já cheiravam mal. Nesta batida, os dez colonos que compunham o grupo roubaram dos índios, também, parte de suas armas, como arcos, flechas, lanças; e artesanato, como balaios e cestos. E o mais desumano e violento: trouxeram quatro crianças, sendo uma de colo, outra de quatro anos, um menino de sete para oito e uma adolescente de quinze. Por sua beleza e seus longos cabelos negros, um dos integrantes da caçada – Nicola Baldessar – resolveu “civiliza-la” para se casar com ela. A maioria, no entanto, não aceitou, criando condições para que ela fugisse, sendo abatida à tiros por outros imigrantes que perambulavam pelo mato. Esta incursão ficou conhecida como “O massacre de Palermo”. Uma foto muita conhecida com os participantes deste crime horrendo, com as crianças indígenas trazidas como troféu, atesta a veracidade do mesmo.
Muitos imigrantes, à boca pequena, em história oral, contavam as mortes cometidas por Natale Coral, alguns apoiando, mas outros tanto condenando. “No l’è stata giusta quella roba che abbiam fato”, teria dito o avô do Quinto, Luigi Baldessar que havia participado do massacre. (Não foi correta aquela coisa que nós fizemos).
Os dois maiores crimes cometidos na humanidade foram a escravização dos negros africanos e o genocídio dos povos indígenas. Começou no século XVI e estendeu-se, desgraçadamente, até o XX. Se os pretos tiveram suas carnes rasgadas pelo duro trabalho para que um punhado de exploradores acumulasse riquezas, os índios perderam suas terras e milhares deles foram mortos, tendo suas orelhas decepadas, para que os imigrantes se estabelecessem. Não se pode homenagear, em hipótese alguma, quem sujou suas mãos de sangue nestes crimes. Matou-se tanto que aos poucos os povos da floresta foram desaparecendo.
Nova Veneza se projeta, hoje, no cenário regional e nacional como uma cidade turística, com seu Carnevale di Venezia, com sua gastronomia italiana, com seus pontos turísticos, como a Casa de Pedras e a barragem sobre o Rio São Bento. Não é aceitável, sob qualquer hipótese, que o prefeito municipal, referendado pelos vereadores, aprove a construção, em um logradouro público, de uma praça homenageando um senhor que tem um passado de caçada, de tocaia, de morte, de massacre e de terror aos povos originários que habitavam esta região. O crime não pode ser reverenciado.
A Bula do Papa Paulo III, emitida em 1537, terra de onde emigraram os colonos empobrecidos pelo capitalismo da península italiana, já declarava que os índios eram “verdadeiros homens”. Portanto, matar um deles é crime.
As autoridades de Nova Veneza têm por obrigação, para ressalvar seu destino turístico e não manchar de sangue mais uma vez seu mapa, revisar, urgentemente, o nome dado a Praça Natale Coral.
Professor do Departamento de História | UFSC