Objetivo principal da lei, que era facilitar procedimentos e parcerias para atividades de pesquisa, não foi atingido, segundo especialistas. Para muitos, o problema só piorou
Muito festejado na data de sua promulgação – 11 de janeiro de 2016 –, o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação brasileiro acaba de completar cinco anos sem muitos motivos para comemoração. A redução da burocracia para atividades de pesquisa e desenvolvimento, que era o mote principal da lei, não se concretizou. Pelo contrário: a maioria dos cientistas vinculados a universidades e institutos públicos de pesquisa acredita que a burocracia aumentou ou permaneceu igual durante esse tempo, segundo uma enquete conduzida pelo Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies).
No papel, tudo certo. O Marco Legal (Lei 13.243/2016) remove uma série de nós e entraves que infernizavam a vida de pesquisadores e dificultavam (ou até impediam por completo) a cooperação entre instituições públicas e privadas para fins científicos. O problema é que essas mudanças até hoje não foram incorporadas a contento no dia a dia dos órgãos de controle (como procuradorias e tribunais de contas) nem das agências de fomento, que financiam os projetos, nem mesmo das universidades e institutos de pesquisa, onde as pesquisas são feitas.
É mais um exemplo de “lei que não pegou” no Brasil, nas palavras da professora Helena Nader, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) — que à época era presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e foi uma das grandes protagonistas no processo de construção e aprovação da lei. “Acabou virando o Marco Ilegal”, diz ela, “já que uma parte importante das autoridades responsáveis não leu ou não concorda com o que está escrito nele”.
O marco reduz impostos, simplifica regras de importação e dispensa a necessidade de licitações para compra de insumos e equipamentos de pesquisa (quase todos eles importados). Também abre a possibilidade para que universidades compartilhem o uso de seus equipamentos e laboratórios com empresas privadas, para fins de pesquisa, e aumenta o número de horas que seus professores podem dedicar a atividades fora do ambiente acadêmico — entre outras mudanças.
“Se fosse para cada um ter sua opinião sobre o que pode ou não ser feito não precisaria haver leis nem Constituição”, completa Helena, claramente frustrada e indignada com a falta de implementação do marco. A regulamentação da lei só ficou pronta dois anos depois, em fevereiro de 2018 (Decreto 9.283).
O resultado é que os entraves foram removidos no papel, mas não na prática. De um total de 147 pesquisadores que responderam à enquete do Confies, 54% avaliaram que a burocracia aumentou nos últimos anos, mesmo com o Marco Legal em vigor. Outros 25% disseram que a situação permaneceu igual — nem pior nem melhor. Entre as fundações de apoio (que intermediam contratos entre os órgãos financiadores e as instituições de pesquisa), 61% disseram que a burocracia aumentou e 32%, que ficou igual. “É uma tendência inversa ao espírito do Marco Legal”, diz o presidente do Confies e diretor executivo da Fundação COPPETEC, Fernando Peregrino, que apresentou os dados no último congresso nacional da entidade, em novembro.
Por “burocracia” entenda-se não apenas a papelada sem fim que precisa ser preenchida para realização de compras e prestações de contas dos projetos, mas também as amarras legais e jurídicas que dificultam a realização de parcerias, convênios e outras formas de colaboração público-privada (entre universidades e empresas, por exemplo), tão comuns em países desenvolvidos, mas ainda vistas como uma espécie de casamento proibido por aqui.
“Mudar certos procedimentos que estão cristalizados no serviço público é muito complicado”, diz a vice-coordenadora da Agência USP de Inovação (Auspin) e professora titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP em Ribeirão Preto, Geciane Porto. “Os órgãos de controle não se atualizaram”, completa ela. “Em alguns aspectos, é como se o Marco Legal nem existisse.”
“Se havia uma esperança de que as coisas ficariam mais simples com o Marco Legal, isso realmente não aconteceu”, avalia, também, o professor Antonio Vargas Figueira, titular do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) e diretor executivo da Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp). As instituições e os órgãos de controle estaduais também estão sujeitos ao marco, já que se trata de uma lei federal. Mesmo no caso em que a prestação de contas é feita a órgãos estaduais, as exigências locais precisam estar de acordo com o que determina a lei federal. (No Estado de São Paulo, essa regulamentação é dada pelo Decreto 62.817, de setembro de 2017.) “Nossa situação é um pouco diferente das universidades federais, mas a percepção é muito parecida”, afirma Figueira.
“Realmente, houve muito pouco avanço”, diz o bioquímico Jair Chagas, ex-diretor do Núcleo de Inovação Tecnológica e atual diretor-presidente da Fundação de Apoio à Unifesp. “Ainda existe uma ideia equivocada de que os docentes vão usar a lei para enriquecer às custas do poder público.”
Efeito cascata
A resistência dos órgãos de controle em seguir as premissas do Marco Legal gera uma insegurança jurídica sistêmica que acaba desestimulando todas as partes envolvidas (pesquisadores, universidades, empresas, agências de fomento) a fazer uso da lei, segundo praticamente todas as fontes ouvidas para esta reportagem. Na avaliação de Peregrino, do Confies, isso acontece porque o marco “tira poder” desses órgãos para controlar tudo o que acontece dentro das instituições públicas. “O controle burocrático se faz por meio de pessoas, que temem ficar enfraquecidas com essa descentralização e flexibilidade que o Marco Legal traz”, avalia ele.
Cerca de 70% dos pesquisadores que responderam à enquete do Confies disseram gastar mais de 20% do seu tempo de trabalho com burocracia, em vez de pesquisa. “Em qualquer hipótese é muito tempo, porque isso é um desvio de função”, disse Peregrino, na abertura de uma mesa que discutiu o tema na conferência de novembro (realizada de forma virtual, em função da pandemia).
“A burocracia é necessária para a existência de uma sociedade organizada. Ela funciona como uma ferramenta de transparência e institucionalidade, que demonstra que os recursos públicos estão sendo corretamente utilizados”, disse o secretário-executivo adjunto do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Carlos Alberto Baptistucci, que foi um dos integrantes da mesa. O problema, segundo ele, não é a burocracia em si, mas a baixa eficiência com que ela é executada. “Precisamos melhorar nossa articulação para que a gente consiga realmente estabelecer procedimentos de prestação de contas em relação à utilização desses recursos que não onerem de forma tão grande (…) quem faz pesquisa no País.”
Uma das premissas fundamentais do Marco Legal é que a fiscalização dos recursos públicos usados nos projetos deve ser feita em cima dos resultados finais, e não dos processos intermediários. Em outras palavras: o que os órgãos de controle devem fiscalizar é se a pesquisa foi feita e quais foram os resultados obtidos; não se o número de canetas adquiridas foi exatamente o que estava previsto, ou se o pesquisador comparou preços suficientes antes de adquirir um microscópio eletrônico. Muitos insumos e equipamentos de alta tecnologia usados em pesquisa têm um único fornecedor, o que é a principal justificativa para a dispensa da obrigatoriedade de licitações.
Outro ponto importante, que diferencia a ciência de outras áreas, é que não é possível prever exatamente como será a execução de um projeto do início ao fim, pois muitas vezes o pesquisador é obrigado a mudar de estratégia ao longo do percurso, dependendo dos resultados de seus experimentos. Para construir um prédio é possível calcular exatamente quantos tijolos, quantas escavadeiras e quantos quilos de areia serão necessários, por exemplo. Para desenvolver um medicamento, não. “O pessoal ainda não entendeu que a ciência é diferente”, afirma Helena Nader.
“Se é pesquisa, eu não tenho como saber qual é o caminho que ela vai seguir. Se eu soubesse, não precisava fazer a pesquisa”, desabafa Peregrino, em entrevista ao Jornal da USP. “A burocracia não entende isso; eles querem que você diga exatamente o que vai fazer do início ao fim.” E continua. “O importante para eles é a prestação de contas, não o resultado. Isso é um estímulo ao desperdício — de que adianta gastar o dinheiro se você não chegou a lugar nenhum? É absurdo.”
“Ficou muito claro que a gente está discutindo uma mudança de mentalidade. É uma coisa muito difícil isso”, disse o secretário de controle interno da Controladoria-Geral da União (CGU), Antonio Carlos Leonel, durante a sua participação na mesa do Confies, em novembro. “A prestação de contas é um direito da sociedade, só que a gente não precisa fazer tão mal”, completou. “A gente gasta mais controlando do que com o valor da compra.”
Segundo Leonel, as mudanças administrativas necessárias já estão sendo implementadas nos órgãos de controle e nos ministérios envolvidos, “o que vai dar condições para fazer a mudança de mentalidade”.
Por parte das universidades, é preciso ainda detalhar melhor os procedimentos internos necessários para colocar em prática alguns instrumento dos Marco Legal — como, por exemplo, o uso de laboratórios acadêmicos pela iniciativa privada. “Não basta dizer que algo pode ser feito; é preciso ter procedimentos muito claros especificando como isso vai ser feito”, explica Geciane, da Agência USP de Inovação. Alguns desses procedimentos já existem, segundo ela, “mas tem dificuldade de aceitação”. Outros são genéricos demais e precisam ser melhor detalhados para funcionar. “Se já tivéssemos 100% do Marco Legal implementado, certamente estaríamos fazendo muito mais”, diz.
“É tudo tão burocrático que as pessoas desistem no meio do caminho”, afirma Figueira, da Fusp. “Perdemos muitas oportunidades com isso.”
Fonte: Jornal da USP