Presidente da Apufsc faz uma avaliação de 2020 e fala das lutas prioritárias do sindicato no próximo ano
Não bastasse a pandemia, o medo do vírus, os esforços de adaptação ao ensino remoto, o home-office desgastante e o empenho para contribuir com o enfrentamento da Covid-19, os profissionais que atuam nas universidades públicas federais também tiveram que lidar em 2020 com negacionismo, falta de recursos e a intervenção do governo nas nomeações de reitores.
Para o presidente da Apufsc, Bebeto Marques, entre todos os ataques à educação brasileira durante este ano, a tentativa de se deslegitimar a ciência é o mais grave deles. “90% da ciência no Brasil é desenvolvida nas universidades e envolve o sistema de pós-graduação. Esses ataques se materializam no corte orçamentário que enfrentamos em 2019, neste ano de 2020 e que vamos enfrentar também no ano que vem”, diz. “Há uma estratégia para que a imagem das universidades seja desgastada”
O professor, que foi reeleito em outubro para liderar o sindicato por mais dois anos, fez uma avaliação de 2020 e falou das prioridades para o ano que vem. “Nossas bandeiras de lutas permanecem as mesmas, mas a gravidade dos problemas se intensifica a toda hora, com as ações e narrativas desse governo que não gosta das universidades públicas, da ciência e faz de tudo para atacá-las.”
Confira a entrevista:
Chegamos ao fim de um ano difícil e desafiador para toda a humanidade. Como 2020 vai ser lembrado pelas universidades públicas, pela UFSC e pelos professores?
Este foi um ano triplamente difícil e muito ruim. O contexto da pandemia afetou todos nós, no convívio social e familiar, de insegurança à nossa saúde e em relação ao futuro de vida das pessoas. Em segundo lugar, nossa atividade de trabalho mudou muito. Precisamos nos adaptar ao home office, ao ensino remoto e reorganizar as atividades acadêmicas e de gestão de nosso trabalho. Não estávamos preparados para essa intensa intermediação das novas tecnologias nas atividades didáticas. Tivemos que nos preparar e aprender fazendo, o que trouxe insegurança e efeitos emocionais. Está todo mundo muito cansado, até porque as relações com os alunos mudaram e tivemos que repactuar todas as atividades de ensino. Mas também as atividades de pesquisa e de extensão foram afetadas, especialmente aquelas de campo e práticas. Contribuiu para esse estresse a excessiva demora da UFSC em definir o retorno e a modalidade dessas atividades não presenciais, algo que prejudicou o cronograma acadêmico. O terceiro fator, que agrava essas duas primeiras situações, são os ataques que o governo dispara a toda a hora contra as universidades públicas, contra a ciência, deslegitimando o nosso papel na sociedade. Isso foi potencializado ainda mais por setores da mídia que jogaram a sociedade contra os docentes, como se nós não estivéssemos trabalhando. Tivemos que, por diversas ocasiões, reivindicar direito de resposta para restabelecer a verdade. Portanto, foi um conjunto de fatores negativos que nos afetaram ao longo do ano e estão nos afetando ainda.
Qual é a avaliação do Sindicato sobre esses meses de ensino remoto na UFSC?
Participamos dos comitês que a reitoria da UFSC organizou em maio e das discussões em torno da organização do ensino remoto. Mas como não temos condições de realizar uma Assembleia Geral, não temos uma avaliação mais ampla e consistente sobre essa experiência. Mas, recentemente, fizemos uma reportagem que nos trouxe elementos de como os professores estão se sentindo com o ensino remoto. A expressão é de que foi positivo, mas com muitas condicionantes e preocupações. O ensino remoto entrou nas nossas casas, tivemos que dividir o espaço do trabalho com a dinâmica familiar. Jovens professores e professoras tiveram de conciliar a rotina do trabalho com a dos filhos. Alguns docentes tiraram dinheiro do próprio bolso para comprar equipamentos melhores e para ter uma internet mais veloz. Essas dificuldades podem ser compreensíveis em situações emergenciais. Mas no ano que vem, teremos que discutir e avaliar formas de melhorar as condições de trabalho dos docentes e alunos, sendo isso uma responsabilidade da reitoria e do MEC.
De tudo o que a educação enfrentou este ano, o que você considera mais grave?
Sem dúvida, a tentativa de deslegitimar a ciência. 90% da ciência no Brasil é desenvolvida nas universidades e envolve o sistema de pós-graduação. Esses ataques se materializam no corte orçamentário que enfrentamos, em 2019, neste ano de 2020 e que vamos enfrentar também no ano que vem. Me refiro ao corte de bolsas da pós-graduação, em particular da área de humanas; dos cortes do financiamento dos projetos de pesquisa, em particular dos projetos universais, que têm maior abrangência e possibilitam principalmente aos docentes mais jovens acessarem os recursos para desenvolverem a pesquisa; do corte de verbas no Fundo Nacional de Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia; do corte no orçamento geral das universidades federais. O projeto de lei orçamentário para 2021 prevê redução de 18% nas verbas de custeio e de capital. Parte desses recursos, cerca de 40%, ainda estará contingenciado, ou seja, não está garantido. Os salários foram congelados até o final de 2021 e as perdas inflacionárias passadas já colocam em dificuldade as famílias dos professores. A deslegitimação e o desfinanciamento da ciência afetam brutalmente as universidades públicas, configurando um verdadeiro processo de desmonte. É algo terrível, que leva as pessoas a adoecerem, porque as condições de trabalho não estão garantidas e somos avaliados ou cobrados por produtividade. Tudo isso se agrava dentro de um contexto de pandemia.
Há ainda uma pressão pela volta do ensino presencial a qualquer custo…
Exatamente. É parte dessa estratégia de fazer com que a imagem da universidade seja desgastada. É um governo que age ideologicamente no âmbito das instituições que universalizam direitos e contrastam com uma visão de mundo estreita, retrógrada – visão essa expressa, em particular, pelo presidente da República. Quando dizem que deveríamos estar no ensino presencial, isso cria a imagem de que somos privilegiados, que não queremos trabalhar ou que não estamos trabalhando. Quando na verdade nós, universidade, embasados na informação científica, somos aqueles que produzimos conhecimentos científicos que ajudam no desenvolvimento da vacina. Somos aqueles que possibilitam que a ciência tenha respostas a uma pandemia. Portanto, estamos atuando dentro dos parâmetros e informações que nós mesmos aconselhamos a sociedade: distanciamento social, higienização, entre outros. Estamos apenas sendo coerentes e cuidadosos com a vida das pessoas. Estamos fazendo ensino remoto porque não queremos aglomeração nos campi, porque não temos biossegurança e não temos vacinação. Tal cobrança, na verdade encobre que o governo está se eximindo das responsabilidades, entre elas a de dar condições para que o ensino semi-presencial possa ocorrer em 2021, pois isso requer financiamento para higienização, afastamento social, sistema de prevenção (máscara e etc). Enfim, o governo usa isso como uma agitação política para desgastar a imagem das universidades federais.
Como foi a atuação do sindicato neste ano completamente atípico?
Toda a estrutura administrativa foi adequada para o modelo remoto. Mas não deixamos de atender no setor jurídico, de serviços e agimos em campanhas de solidariedade, disponibilizamos máscaras aos filiados, apoiamos com recursos financeiros iniciativas de docentes para ajudar no início da pandemia, bem como com a distribuição de cestas básicas para a população carente e indígenas. São todas ações do Apufsc-Solidária. Porém, em temas que envolvem grandes debates, como filiação nacional e reformulação estatutária para adequação das diretorias, não conseguimos avançar. Nem mesmo a prestação de contas, que exige uma assembleia específica, tivemos como realizar. Mas na primeira oportunidade, faremos. As reuniões da diretoria e do Conselho de Representantes têm acontecido de modo virtual. A Apufsc tem atuado no limite das condições estatutárias e que as tecnologias nos permitem. Por exemplo, recentemente fizemos um encontro virtual com todos os titulares do plano Unimed da Apufsc para discutir o reajuste das mensalidades. Também ao longo do ano, nos mantivemos mobilizados e conectados com outras entidades sindicais nacionais em torno do Observatório do Conhecimento. Enviamos cartas aos parlamentares, participamos de um grande ato nacional em defesa da educação, além de outras ações importantes, como a que permitiu a aprovação do Fundeb e a que garantiu o repasse integral de verbas apenas para a rede pública. Também fizemos uma série de lives sobre temas políticos e acadêmicos importantes, tendo boa receptividade na categoria. Só temos a agradecer profundamente aos professores, que corresponderam às nossas chamadas e colaboraram com a atividade sindical. Também agradecemos aos funcionários da Apufsc, que têm entendido o momento difícil e ajudado a categoria.
Na sua avaliação, o movimento sindical sai mais forte ou mais enfraquecido deste ano de 2020?
De modo geral, o movimento sindical está muito enfraquecido e, no meio universitário, nós temos um problema adicional, relacionado ao modo como as entidades docentes atuam. O Andes e o Proifes não têm conseguido dar respostas à nova configuração da categoria, formada por jovens docentes muito especializados. É preciso renovar a narrativa, o modo como o sindicato se conecta com os problemas acadêmicos diários dos docentes, tratando não só questões trabalhistas como salário e carreira, ainda que também sejam temas importantes. Durante os governos progressistas, a universidade cresceu, os docentes tiveram acesso a recursos para pesquisas, houve renovação da categoria, os salários aumentaram, não aconteceram greves e isso levou a uma acomodação em relação às lutas sindicais. O produtivismo acadêmico ganhou força e também a ideia de que cada um pode resolver seus problemas por si próprio, alcançar seus objetivos sozinho e ter reconhecimento e valorização em base ao mérito acadêmico. Tudo isso vem mudando muito e, nos últimos dois anos, com um governo que promove o desmonte do estado, que dividiu o país e que tem sido muito duro e destrutivo com as universidades, o que percebemos foi o crescimento da desesperança e um certo medo da atividade política. Mas isso está paulatinamente mudando e está havendo um maior interesse e envolvimento da categoria, até porque temos perdido direitos, a exemplo da reforma da previdência e do congelamento de nossos salários. Quero crer que nós, na Apufsc, temos sido capazes de dialogar melhor com a categoria. Neste ano, a eleição da nova diretoria teve a maior votação da história, com duas chapas. A ideia de uma Apufsc de lutas, que expressava a defesa de uma atividade política plural e democrática, foi referendada para um segundo mandato, respeitando os mesmos princípios da diretoria anterior. Quero crer que o movimento sindical se renova também a cada dia. Nesse sentido, o Observatório do Conhecimento é uma expressão dessa renovação, pois nele se encontram espontaneamente várias entidades do sindicalismo docente, sem se preocupar se filiadas ou não ao Andes ou Proifes, entidades essas que têm seus papéis respeitados. O movimento sindicalista universitário precisa e está sendo repensado e a Apufsc vai contribuir para construir essa nova visão e para renovar as práticas sindicais tanto local quanto nacionalmente. Também iremos trabalhar muito para que docentes novos se filiem ao sindicato e ajudem a construir esse sindicalismo moderno e renovado.
Diante disso, quais são as lutas prioritárias em 2021? O que vem pela frente e como o sindicato vai atuar?
As bandeiras de lutas permanecem as mesmas, mas a gravidade dos problemas se intensifica a toda hora, com as ações e narrativas desse governo que não gosta das universidades públicas, da ciência e faz de tudo para atacá-las. As universidades chegaram ao pior nível de financiamento dos últimos dez anos, mas sendo cada vez mais exigidas em termos de produção em pesquisa, de ações de extensão e de colaboração com a sociedade. Não é mais possível que 86% do orçamento da universidade seja para pagar pessoal. Não é porque ganhamos muito, é porque as verbas de custeio e capital são cada vez menores na composição do orçamento. Portanto, é preciso aumentar o orçamento da universidade, principalmente em custeio e capital. As universidades estão ficando sucateadas e isso afeta as condições de trabalho docente e o aprendizado dos alunos. Precisamos ainda de concursos para docentes e de técnicos-administrativos. A universidade passou por um processo de expansão, com o Reuni, mas com a categoria se aposentando, os campi precisam se consolidar. Além disso, precisamos garantir a autonomia das universidades, seja na liberdade de cátedra seja do ponto de vista da nomeação dos reitores, pois está ocorrendo uma verdadeira intervenção do governo federal, do presidente da República, que, por esse mecanismo, quer controlar o que aqui se faz e se diz. É um ataque ideológico e a desfiguração completa da instituição Universidade, que pertence ao povo e não ao governo. Esses são pontos importantes que permanecem e se agravam, infelizmente.
Imprensa Apufsc