Por Dilvo Ristoff
— Quando a alma de um homem nasce neste país, há redes lançadas para impedi-la de voar. Você fala comigo de nacionalidade, idioma, religião. Vou tentar voar com essas redes.
— Muito profundo para mim, Stevie, disse ele. Mas, o país de um homem vem em primeiro lugar, Stevie. Você pode ser um poeta ou um místico depois.
— Você sabe o que é a Irlanda? — perguntou Stephen com fria irritação. — A Irlanda é a velha porca que come os seus próprios filhotes.
James Joyce
Se você pensa que o custo da educação é alto, pense no custo da ignorância.
Robert Orben (em geral, erroneamente, atribuído ao ex-reitor da Universidade de Harvard Derek Bok).
Para sustentar a expansão da educação brasileira, tanto a básica quanto a superior, com a qualidade pretendida, os formuladores do Plano Nacional de Educação (PNE) propuseram a ampliação do investimento público em educação pública até atingir um patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) no quinto ano de vigência do plano e de 10% até 2024.
Estudo do Inep indica que, em 2018, o Brasil aplicava 5,4% do PIB em educação e 5% em educação pública. Ou seja, a meta prevista para 2019 não foi alcançada e a de 2024, a julgar pelo andar da carruagem, virou letra-morta. Mesmo assim, há quem argumente que o Brasil investe o suficiente em educação, pois o recurso alocado seria, em média, equivalente ao dos 37 países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os dados indicam que, de fato, o percentual do PIB brasileiro investido em educação em 2018 era praticamente igual ao percentual médio dos países da OCDE.
Para sabermos, no entanto, se realmente investimos algo equivalente ao que investem esses países, o percentual do PIB, por si só, é insuficiente, como já bem destacou estudo de Nelson Amaral há alguns anos. Amaral demonstra que o percentual do PIB deveria ser tomado apenas como um indicativo de compromisso com a educação, pois o importante é verificar o quanto este percentual representa em investimento per capita, estabelecendo-se uma relação entre o tamanho do PIB e o tamanho da população em idade educacional a ser atendida. Amaral demonstra, por exemplo, que o percentual do PIB aplicado em educação pela Bolívia era superior ao percentual do PIB aplicado pelo Canadá. Enquanto a Bolívia aplicava 6,4% do PIB, o Canadá aplicava apenas 5,2%. O PIB da Bolívia, no entanto, somava apenas 45 bilhões de dólares, o que significa que destinava à educação 2,8 bilhões para atender uma população em idade escolar de 4,1 milhões de jovens, ou seja, aplicando por aluno cerca de 695 dólares por ano. Já o Canadá, que aplicava percentualmente menos que a Bolívia, tinha um PIB de 1,2 trilhão de dólares, ou seja, um volume de recursos cerca de 27 vezes superior. Aproximadamente 5% deste volume era aplicado para atender uma população pouco mais de duas vezes maior do que a população em idade educacional da Bolívia, representando, por isso mesmo, em termos per capita cerca de 7.730 dólares, ou seja, onze vezes mais.
A explicação da OCDE para o pequeno impacto do percentual do PIB brasileiro sobre o valor aplicado por aluno/ano corrobora, por outros caminhos, a tese de Amaral. Escreve a OCDE: “por causa do PIB per capita relativamente baixo do país e a participação abaixo da média no total de gastos do governo, o valor absoluto gasto por aluno nesses níveis é menos da metade da média da OCDE” (Education at a Glance, 2019 – Country Note).
Ou seja, para dar sustentação a uma educação inclusiva e de qualidade não basta levar em consideração tão somente o percentual do PIB. Importa também considerar o tamanho do PIB, o tamanho da população em idade educacional e a dívida social acumulada ao longo dos anos com as populações excluídas do sistema educacional. No caso do Brasil a população em idade educacional obrigatória (4-17 anos) atinge mais de 45 milhões de crianças e jovens, algo em torno de 22% da população. Há, no entanto, o compromisso legal de atender também 50% das crianças de 0 a 3 anos (Meta 1), o que acrescentaria mais 5,3 milhões. Some-se a isso o compromisso com a inclusão de, pelo menos, 50% dos jovens de 18 a 24 anos (Meta 12), na educação superior, o que acrescentaria ainda outros 11 milhões de jovens. Somados aos demais, teríamos, portanto, um compromisso legal direto com cerca de 52 milhões de jovens, beirando os 25% da população brasileira. E ainda não incluímos nessa dívida os que estão fora dessas faixas etárias, com mais de 24 anos, que foram alijados do processo educacional pelo nosso elitismo histórico e que hoje representam, na educação superior, cerca da metade dos 8,6 milhões de matriculados. Estamos, pois, diante de uma dívida social sabidamente imensa, capaz de diluir consideravelmente o investimento per capita do mais potente PIB brasileiro.
Por esse motivo, as comparações internacionais se tornam menos imprecisas quando, além do percentual do PIB, se considera também o quanto efetivamente se gasta por aluno em cada um dos níveis educacionais. Quando estacomparação é feita, percebe-se que o Brasil investe bem menos, muito menos, que os países da OCDE, em todos os níveis.
Vamos aos dados: no ensino fundamental I, em média, os países da OCDE investem, por aluno, 8.600 dólares/ano, enquanto o Brasil investe 3.800 dólares, ou seja, 4.800 dólares a menos; no ensino fundamental II, a média OCDE, por aluno, é de 10.200 dólares/ano, enquanto o Brasil investe 3.700 dólares, ou seja, 6.500 dólares a menos; no ensino médio, a média OCDE é de 10.000 dólares por aluno/ano e a do Brasil, apenas 4.100 dólares, ou seja, 5.900 dólares a menos; e na educação superior a média OCDE chega a 16.100 dólares/aluno/ano e a do Brasil, a 14.200 dólares, ou seja, 1.900 dólares a menos. Não são diferenças triviais e elas nos levam à inescapável inferência de que, ao contrário do que apregoam alguns, o investimento brasileiro por aluno/ano é insuficiente para assegurar uma qualidade minimamente comparável à dos países da OCDE.
Mesmo que conseguíssemos, por um momento, esquecer do importante alerta que nos faz Robert Orben sobre o fato de que o custo da ignorância é sempre bem mais alto que o custo da educação, mesmo assim, os dados acima mostram que o argumento de que investimos o suficiente em educação não se sustenta. Tal constatação parece ser motivo suficiente para que, no caso brasileiro, se busque aumentar o investimento por aluno e não reduzi-lo, como ameaçam recentes ações do governo, e uma boa sinalização neste sentido seria retomar urgentemente o caminho rumo ao pleno alcance da Meta 20 do PNE. Mesmo que isso não seja suficiente para quitar a nossa imensa dívida social, a medida duplicaria o montante de recursos hoje disponíveis e certamente ajudaria em muito a sinalizar a intenção de reduzir as dificuldades da educação pública brasileira nos próximos anos. Sem recursos adicionais, tanto as metas de expansão e inclusão quanto as de melhoria de qualidade ficam seriamente comprometidas.
Custo Social
Feitas estas observações, cabe ressaltar que as metas de expansão e inclusão da educação brasileira, previstas na lei do PNE, correm sério risco não só porque os atuais governantes têm demonstrado uma visão antissistêmica da educação e pouco apreço pelas metas suprapartidárias aprovadas pelo Congresso Nacional em 2014, mas também porque a Emenda Constitucional 95 (EC 95), aprovada em dezembro de 2016, inviabiliza, até o distante ano de 2036, novos projetos de expansão e mesmo de consolidação do que já se construiu nas redes de educação pública.
Mantidas as atuais restrições, tornam-se letra-morta coisas como a promessa do atendimento de 50% das crianças brasileiras de 0 a 3 anos. Hoje atendemos em creches tão somente 3,8 milhões de crianças de uma população de 10,6 milhões. Beira à perversidade deixar tantas famílias sem este apoio, especialmente quando constatamos que países da OCDE, como Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Noruega e outros, garantem atendimento público a todas as crianças desde o nascimento ou imediatamente após a licença maternidade. Morre também a tímida, mas importante, proposta do PNE de escola em tempo integral para 25% dos estudantes da rede pública (Meta 6). Ou seja, morre algo que os países da OCDE há muito tempo não ousam negar a nenhum de seus filhos. Para registro: na Finlândia – aquele país que apresenta alguns dos melhores resultados no Pisa e onde a escola pública funciona em tempo integral para todos – a principal refeição do dia (a refeição quente) é garantida na escola a todas as crianças desde 1948! No Brasil, lamentavelmente, a escola em tempo integral só é negada aos filhos dos pobres, pois os filhos dos ricos sempre usufruíram, a seu modo, da escola em tempo integral, preenchendo o seu dia com aulas pagas de vários tipos no contraturno do horário escolar. E, no entanto, nós, como país, despreocupados com o custo da ineficiência e com os riscos da ignorância, continuamos a tornar impossível a tarefa de oferecer a meros 25% dos nossos estudantes das escolas públicas o que há décadas é oferecido a todos os estudantes em tantos outros lugares do mundo.
O custo social dessas incompreensões é alto e terá que ser pago, mais cedo ou mais tarde, por todos nós. Essas incompreensões afetam diretamente a qualidade da educação, negam aos indivíduos os pré-requisitos para bem operarem na sociedade do conhecimento e sufocam as energias criativas da nação. Trata-se, portanto, de um custo muitíssimo mais alto do que os poucos dólares que investimos por aluno/ano. A ignorância não é apenas mais cara do que a educação – ela é também mais ineficiente e mais perigosa. Está na hora de o Brasil deixar de ser o seu pior inimigo; está na hora de o Brasil parar de sabotar a si próprio. Até quando, como diria James Joyce, a pátria amada vai se comportar como “a velha porca que devora os próprios filhotes”? Precisamos urgentemente descobrir um jeito de nos protegermos de nós mesmos.
Dilvo Ristoff é doutor em literatura pela University of Southern California, nos Estados Unidos. Foi diretor de Estatísticas e Avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diretor de Educação Básica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e diretor de Políticas e Programas da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Foi também reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul. É autor e coautor de inúmeros livros, entre eles, Universidade em foco − reflexões sobre a educação superior (Editora Insular, 1999), Neo-realismo e a crise da representação (Insular, 2003) e Construindo outra educação: tendências e desafios da educação superior (Insular, 2011). Atualmente ministra aulas e orienta dissertações no Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).