Por Waldir José Rampinelli
O livro Guerra Fria – História e Historiografia (1), do professor Sidnei Munhoz (2), é o resultado de uma longa pesquisa sobre um período que vai marcar profundamente a segunda metade do século XX. O objetivo do trabalho é apresentar ao leitor uma história, efetuando um balanço historiográfico deste enfrentamento entre duas grandes potências mundiais com seus desdobramentos nos demais países (p. 29). O autor analisa
com muita acuidade as posições dos ortodoxos, dos corporativistas, dos revisionistas e dos pós revisionistas.
A Guerra Fria é a grande estratégia utilizada pelos Estados Unidos para inviabilizar o socialismo na União Soviética, trabalho iniciado já em 1917, quando do triunfo da Revolução Russa. A corrida armamentista prejudicou um desenvolvimento econômico e industrial na pátria de Lênin. Enquanto o Sputnik dava voltas ao redor da Terra assombrando o mundo, nas cozinhas dos moscovitas não se tinha um detergente capaz de lavar uma panela.
Antes de entrar no tema propriamente do livro, o autor dedica longas páginas sobre a Segunda Guerra Mundial – a origem de tudo – passeando com desenvoltura, com conhecimento e com análise pelos acordos, pelas cartas, pelas conferências, pelos tratados e pelas operações dos Aliados na sua luta contra o Eixo. Munhoz mostra que o Exército Vermelho foi fundamental na derrota do nazifascismo, pagando um preço altíssimo em vidas humanas e perdas materiais, enquanto a Inglaterra e os Estados Unidos postergavam a criação da Segunda Frente, na espera de que os comunistas e os nazistas fossem à exaustão para então entrar em cena. Winston Churchill vai mais longe: desejando expulsar os soviéticos da Europa Oriental, ordena a seus subordinados que estudem um plano para tal consecução. Tudo isso entre aliados. O gosto pela perversão e pela traição do primeiro-ministro inglês vem de longe, quando ainda era secretário de Estado de Guerra e da Aeronáutica (1920), ao utilizar a estratégia dos bombardeios com armas químicas, como as bombas de gás mostarda, para economizar dinheiro e soldados na dominação do Iraque. Devido ao gás venenoso e aos tanques, os britânicos recuperaram o controle da região, em setembro de 1920, sem deixar de lado as expedições punitivas pelos territórios rebeldes, queimando vilarejos, executando suspeitos, confiscando mantimentos e aplicando multas. Mais tarde, a força aérea britânica bombardeava regiões do Iraque, como o baixo Eufrates, já não para reprimir tumultos e sim pressionar os vilarejos a pagar seus impostos. Em fins de 1921, Churchill observou com satisfação que seus aeroplanos haviam passado a ser temidos e continuou a defender o uso do gás venenoso. Questionado por um coronel, subordinado seu, sobre os horrores causados pelos efeitos dos bombardeios, Churchill o repreendeu severamente dizendo que “não entendo essa aversão ao uso de gás. Sou totalmente a favor do uso de gás venenoso contra tribos incivilizadas” (3).
Na batalha de Stalingrado, entre agosto/42 a fevereiro/43, afirma Munhoz, os invasores alemães experimentaram a primeira derrota militar de grande magnitude, consolidando a crença na irrefragável vitória sobre os regimes nazi-fascistas e vislumbrando no horizonte a arquitetura de uma nova ordem mundial (pág. 65). Já para o historiador Mike Davis é a Operação Bagration, de junho de 1944, o ataque soviético decisivo contra a retaguarda da poderosa Wehrmacht de Hitler. É a batalha da libertação da Europa. No entanto, não se encontra uma palavra sobre esta operação nos livros básicos de história nos Estados Unidos. E isso tudo, apesar de esta ofensiva de verão soviética – chamada pelo historiador Jon Erickson de o grande terremoto militar – ter sido muito mais grandiosa que o direto infligido aos alemães. Não tivesse havido a Bagration dificilmente aconteceria a Normandia.
O professor Munhoz critica duramente o lançamento de duas bombas nucleares sobre o Japão, juntando-se aos historiadores revisionistas e mostrando que a rendição nipônica era apenas questão de tempo. Por sua vez, os ortodoxos justificam este crime contra a humanidade, alegando que se pouparam vidas humanas, tanto lá quanto cá. Nada a estranhar, afinal sempre houve intelectuais que apoiaram genocídios, inclusive, justificando-os. O inacreditável, até os dias de hoje, é a humilhante aliança de Tóquio com Washington no pós-guerra, quando não a argumentação subserviente de alguns nipônicos de que este assunto pertence ao passado. Na verdade, a monstruosidade praticada por Truman serviu para vingar Pearl Harbor, para frear o avanço do Exército Vermelho na Ásia, para dar início à Guerra Fria, para montar uma nova ordem internacional comandada pelos Estados Unidos. Além do mais, a explosão destes artefatos tem um nítido caráter racista, pois jamais se faria isso contra os alemães, no coração da Europa. Na Conferência de Potsdam, Washington negociava com arrogância, pois dispunha desta arma ainda em segredo, decidindo utilizá-la logo depois e elegendo as cidades japonesas como se escolhem laranjas na feira.
Harry Truman, uma vez presidente, analisado exaustivamente por Munhoz, redireciona completamente a política externa estadunidense, criando a sua própria doutrina belicista. Como senador, já defendia a tese de que alemães e russos que “se matem tanto quanto possível”. É o peso da presidência imperial, conceito que ajuda a entender os rumos que norteiam o comportamento regional e internacional dos Estados Unidos, permitindo identificar as continuidades e descontinuidades desta projeção de poder desde a fundação da nação estadunidense no final do século XVIII até a crise da pax americana, nos tempos atuais. John Saxe-Fernández define a presidência imperial como “a expressão institucional de uma realidade sistemática que surgiu da própria natureza do desenvolvimento capitalista ainda que, sem dúvida, o regime de exceção instaurado depois do 11 de setembro [de 2001] tenha acentuado de maneira inusitada a usurpação, por parte desta presidência, das funções legislativas e judiciárias em níveis ditatoriais”. A presidência imperial, com sua tendência autocrática, operou historicamente nos Estados Unidos em diferentes esferas de poder, tais como: 1) no completo domínio territorial da América do Norte, quer obrigando a França a “vender” a Luisiânia, a Espanha a “ceder” a Flórida Ocidental, o México a “entregar” mais da metade de seu território e os indígenas a perderem suas ricas terras; 2) na subjugação religioso-cultural, por meio da Doutrina do Destino Manifesto, fazendo crer que Deus havia delineado uma grande missão aos fundadores daquela nação, qual seja, levar a civilização aos bárbaros; 3) na não permissão da existência de qualquer potência, ou grupo delas, no Hemisfério Ocidental, que ameace a hegemonia econômico-militar dos Estados Unidos; e 4) no controle dos Estados Unidos sobre os oceanos, não permitindo que nações europeias e asiáticas criem algum tipo de dificuldade e orientando suas energias para ameaçar ou fazer guerras terrestres na Eurásia. A presidência imperial é, portanto, um tema com uma pauta imperialista (4).
O Plano Marshall, no pós-guerra, apresentado como um grande projeto de cooperação econômica com a Europa, tinha dois objetivos muito claros, segundo Paul Kennedy: acalmar o enorme descontentamento que varria o continente devastado e frear a crescente influência soviética na região; e, consequentemente, manter os países atados aos interesses de Washington. Os recursos destinados ao desenvolvimento industrial do “mundo livre” caminhavam de braços dados com o estabelecimento de uma série de tratados sobre bases militares e de segurança, projetando uma hegemonia global para o capitalismo estadunidense. Gabriel Kolko mostra que a Ata de Ajuda Externa exigia que os beneficiários pusessem à disposição dos Estados Unidos ao menos 5% das moedas da contraparte local para comprar matérias primas, exigindo, simultaneamente que as nações europeias e suas colônias se abrissem aos investimentos vindos do Norte sobre uma base de igualdade.
Os resultados diretos da Guerra Fria no Terceiro Mundo são tratados pelo autor, fazendo escolhas, pois não seria possível abranger todos os países e todas as regiões. No tocante à América Latina, a Nicarágua é muito bem descrita com sua Revolução Sandinista, com a guerra dos Contra, com o escândalo Irán-Contras. Faltou, a meu juízo, trabalhar a literatura produzida no México e na América Central sobre a Pátria de Sandino, já que muito se escreveu por lá e com bastante propriedade.
Agora, a grande ausência do livro é a Revolução Cubana e o seu papel fundamental no contexto da Guerra Fria. C. Wright Mills, em Escucha Yanqui, chega a dizer que “para a América Latina não oficial de hoje, a Revolução Cubana é o que a Revolução Francesa foi para a Europa – com toda sua ambiguidade, porém também com todas as suas promessas. Por sua vez, Gordon Connel-Smith, em Los Estados Unidos y La América Latina, afirma que “o fato de Cuba se alinhar com a União Soviética foi a violação mais evidente possível da Doutrina Monroe”. Logo em seguida Kruschev comenta que esta doutrina não apenas está morta, mas também enterrada. A Cuba socialista é um divisor de águas na história das relações internacionais do continente, pondo a América Latina dentro das preocupações de Washington. Tanto que, para evitar novas revoluções na região, as ditaduras de segurança nacional, comandadas pelo Pentágono, em uma verdadeira teoria de dominó, foram acontecendo por todo o Cone Sul. A Operação Condor, uma transnacional do terror de Estado, foi um braço armado destes regimes, servindo para eliminar opositores, permitir a acumulação das classes dominantes internas e externas e aprofundar a dependência capitalista.
No tocante a Cuba, as Declarações de Havana I e II, respectivamente de 1960 e 1962, estabelecem diretrizes fundamentais de sua política internacional, marcadamente no enfrentamento ao imperialismo e na construção do socialismo; o auxílio à Argélia e à Guiné-Bissau em suas guerras contra o colonialismo, assim como o apoio à integridade territorial da Etiópia, desagradam a Washington; a presença de Che Guevara no Congo, e depois na Bolívia, aciona internacionalmente a Agência Central de Inteligência (CIA) para a sua captura e a sua morte, bem como para o estabelecimento de políticas de contra insurgência na região (5); o apoio ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a participação na Batalha de Cuito Cuanavale (1987), na qual as tropas cubanas, juntamente com as angolanas, derrotaram as sul-africanas, integralmente apoiadas pelo Pentágono, inflige uma derrota amarga aos Estados Unidos, levando os racistas de Pretória a negociar não apenas o fim das intervenções em Luanda, como também a independência da Namíbia e abrindo caminho para o término do apartheid em seu próprio território; o Acordo Tripartido, assinado na ONU em 22 de dezembro de 1988 entre as três repúblicas (África do Sul, Angola, Cuba), pondo fim ao conflito no sudoeste africano, instrumentalizando a independência da Namíbia, terminando com a ajuda de Pretória ao grupo guerrilheiro da UNITA e retirando as tropas cubanas de Angola, são todos feitos internacionais inseridos no contexto do enfrentamento entre as duas grandes potências. Durante três décadas, que vão do triunfo da Revolução Cubana ao término da Guerra Fria, diz Piero Gleijeses, a Ilha mandou mais soldados para os demais continentes que os países da Europa Ocidental e que a própria União Soviética, mudando, neste caso, os rumos da África Austral. Havana adotou a estratégia de enfrentar Washington pelos caminhos do Terceiro Mundo, angariando aliados e debilitando a influência estadunidense (6). Paradoxalmente, ainda hoje continua a Guerra Fria contra a Cuba Socialista.
Na “cronologia dos principais eventos da Guerra Fria”, faço três observações: 1) 1961: embora Fidel Castro, em 2 de dezembro, tenha afirmado ser marxista leninista e que Cuba adotará o comunismo, no entanto foi em16 de abril, quando da invasão de Playa Girón, que ele proclamou por primeira vez o caráter socialista da revolução; 2) 1979: no dia 19 de julho triunfa a Revolução Sandinista na Nicarágua, acontecimento importante dentro do contexto da Guerra Fria; 3) 1989: em 20 de dezembro acontece a invasão armada dos Estados Unidos ao Panamá, sendo a primeira do século XX com a justificativa de coibir o narcotráfico, quando na realidade tinha como escopo reverter os “tratados canaleros” de 1977, devido as mudanças na conjuntura internacional, de não mais ser viável uma guerra global, mas sim regional, adquirindo a passagem inter-oceânica uma nova importância.
Guerra Fria – História Historiografia, do professor Sidnei Munhoz, um excelente trabalho de pesquisa para compreender, entender e analisar este longo período do século XX. Leitura obrigatória para os estudiosos do tema.
(1) Editora Appris, Curitiba: 2020, 314 páginas.
(2) Professor visitante sênior do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina e professor voluntário do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá.
(3) DAVIS, Mike. Apologia dos bárbaros – ensaios contra o império. Editora Boitempo, São Paulo: 2008, p. 114.
(4) SAXE-FERNÁNDEZ, John. Terror e império – la hegemonía política y económica de Estados Unidos. Debate, México: 2006, p. 16-17.
(5) A Agência Central de Inteligência (CIA), criada em 1947, cometeu uma série de crimes ao longo destas seis décadas, tais como: atuou, por meio da guerra psicológica e da corrupção de lideranças, na sabotagem ao avanço dos países socialistas; conspirou, através da desinformação e do terror de Estado, contra os governos nacional-populares, os movimentos de libertação dos povos e o sindicalismo de resistência; realizou espionagem industrial, utilizando-se do “imperialismo do dólar”, para as multinacionais estadunidenses; manipulou planos econômicos de vários países, inviabilizando pela contra informação, uma saída para um estágio de capitalismo nacional e autônomo; violou, com a ajuda de empresas de telecomunicações, mensagens eletrônicas e telefônicas de cidadãos do Brasil, da América Latina e do mundo; e assassinou, de ditadores como Rafael Leônidas Trujillo, na Republica Dominicana a guerrilheiros, como Ernesto Guevara de La Serna, na Bolívia, quando ambos não lhe interessava em sua estratégia. Se por um lado a CIA tentava inviabilizar a consolidação de um sistema superior ao capitalismo, por outro buscava criar mecanismos que extraíssem o excedente econômico dos países do Terceiro Mundo em favor de suas transnacionais. Por conta disso, deixou rios de sangue por onde passou.
(6) GLEIJESES, Piero (org). Cuba y África – historia común de lucha y sangre. Editora Ciências Sociais, Havana: 2008, p. 2.
Waldir José Rampinelli é professor Doutor do Departamento de História da UFSC