Por Dilvo Ristoff
Qui le croirait! on dit,
qu’irrités contre l’heure
De nouveaux Josués
au pied de chaque tour,
Tiraient sur les cadrans
pour arrêter le jour.
Walter Benjamin
[Quem acreditaria!
Irritados com o tempo,
Os novos Josués,
Ao pé das torres,
Atiram nos mostradores
para parar o dia.]
Diante do vertiginoso crescimento da educação a distância (EAD), ocorrido nos últimos anos, houve uma ligeira piora no desempenho dos estudantes EAD no Exame Nacional de Desempenho do Estudante (Enade). Convém lembrar que, em 2004, quando a EAD representava apenas 1,4% das matrículas da graduação (hoje representa 24,3%), os estudantes EAD tiveram desempenho superior em 7 de 13 áreas avaliadas. Dados do Enade de 2017 indicam que 54% dos cursos EAD obtiveram conceitos satisfatórios (3, 4 e 5). Nos cursos presenciais esse percentual foi maior (68%). Já no Enade de 2018, 73% dos cursos EAD tiveram conceitos satisfatórios contra 71% dos presenciais. Em 2019, aumentou consideravelmente a vantagem dos cursos presenciais, com 65% de cursos com conceitos satisfatórios contra apenas 49% dos cursos a distância. Essa constatação tende a perpetuar a reputação negativa que tem acompanhado a educação a distância ao longo dos anos, reforçando a impressão de que os cursos presenciais são, por natureza, melhores. Podem até ser melhores, e em muitos casos são, mas o que dizer dos 35% de cursos presenciais (que representam uma parcela bem maior das matrículas) que tiveram notas insatisfatórias?
O que os dados indicam é que as duas modalidades têm méritos e problemas e não é possível afirmar, como pretendem alguns, que presencial é bom e EAD é ruim, que presencial é o céu e EAD é o inferno. A educação presencial, como vemos, não é e nunca foi um exemplo de alta qualidade. Por outro lado, só quem desconhece o potencial da educação a distância ousaria descartá-la como inútil ou como um desserviço à educação.
Mesmo que o desempenho dos estudantes no Enade pudesse ser tomado como indicador exclusivo da qualidade do curso (não é!), fica evidente que a qualidade, ou a falta dela, não pertence a uma ou a outra modalidade. Poder-se-ia inclusive argumentar que a situação é mais grave na modalidade presencial, por ter vícios mais consolidados, ao contrário da EAD, que ainda ensaia os seus primeiros passos, podendo, portanto, rever com mais facilidade os seus métodos, técnicas e estratégias. O fato é que o desempenho dos estudantes no Enade tem menos a ver com a modalidade e muito mais com outros fatores, entre eles, a categoria administrativa da instituição, a qualidade do corpo docente, o nível acadêmico dos estudantes quando do ingresso, entre outros.
Novas matrículas EAD privatizadas
Apesar de a Meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE) estabelecer um limite de 40% para as novas matrículas do setor privado, o que se observa, passados seis anos, é uma aceleração alucinada da privatização via EAD. Em seis anos (2012-2018), enquanto as matrículas presenciais privadas tiveram um aumento inexpressivo de 6,6%, as matrículas EAD cresceram 102%. Detalhe curioso: embora as novas matrículas totais de EAD somem 942.661, o aumento no setor privado foi de 951.358, ou seja, maior do que o total. A explicação está na retração do crescimento das matrículas da EAD pública, que perdeu no mesmo período 8.697 matrículas. Resumindo: as novas matrículas da modalidade EAD, criadas a partir da aprovação do PNE, foram entregues ao setor privado, que é justamente o setor onde encontramos as maiores incidências de cursos com nota insuficiente.
Mais preocupante ainda é o número de vagas ofertadas. Os dados do Censo da Educação Superior de 2018 indicam que foram abertas no setor privado 9,2 milhões de vagas novas, das quais 5,8 milhões eram vagas EAD. É bem verdade que grande parte dessas vagas estão e permanecerão ociosas. O lado preocupante, no entanto, está menos na ociosidade e mais no disparatado impulso à privatização da educação superior, via EAD, que esta oferta já autorizada representa. Estamos, sem dúvida, diante de uma combinação perigosa que debocha da proporcionalidade prevista na lei do PNE. E, claro, debocha também do MEC, que a cada dia demonstra ter menos controle sobre o desenfreado processo de expansão em curso.
Com as recentes investidas contra as universidades públicas e os institutos federais e diante dos espetaculosos ataques contra docentes atuantes na Universidade Aberta do Brasil, a oferta de vagas EAD tende a se retrair justamente nas instituições públicas e gratuitas que poderiam assegurar um ensino a distância de melhor qualidade. Diante desse quadro, fica claro que, nos próximos anos, a menos que haja uma profunda mobilização no sentido de se fazer cumprir a lei do PNE, a modalidade passará a ser exclusividade do comércio educacional.
Mesmo diante dos riscos que o comércio educacional impõe, demonizar a modalidade a distância é tão inócuo quanto apontar as armas e atirar contra os ponteiros do relógio para fazer o tempo parar; é condenar o instrumento e não o uso que é feito dele. Fica a cada dia mais evidente que as novas tecnologias vieram para ficar e que a educação presencial, queiramos ou não, será inexoravelmente contaminada e, em muitos casos, positivamente, pelo fácil acesso à informação e pelos novos métodos, técnicas, ritmos e percursos de aprendizagem trazidos pelo ensino remoto. Nesse contexto é fundamental marcar presença para imprimir novas histórias, não como míticos luditas ou modernos Josués dispostos a liquidar o inimigo, mas como cidadãos comprometidos com a causa educacional, buscando garantir que as novas tecnologias atendam tanto aos propósitos acadêmicos quanto aos interesses trabalhistas dos profissionais da educação. Agir como se as novas tecnologias fossem um demônio do qual precisamos manter distância é negar o curso da história.
A disputa por titularidade
Fica evidente que a discussão hoje precisa estar menos centrada na questão da modalidade em si e mais na titularidade do processo educacional, menos no instrumental e nas plataformas x, y ou z e muito mais em quem será, afinal de contas, responsável pela educação superior no país: quem investe na educação porque ela é um bem público ou quem transaciona com a educação porque a vê como mercadoria e fonte de lucro? Quem quer um corpo docente altamente qualificado ou quem quer um corpo docente de baixo custo? Quem tem hoje um quadro docente com 68% de doutores ou quem tem apenas 19%? Quem tem 24% de seus cursos com conceito 5 no Enade ou quem tem apenas 1,4%? Quem tem 43,4% de seus cursos com conceitos insuficientes ou quem tem 5%? Quem vê a educação superior como um projeto de Estado ou quem a vê como um projeto de empresa com fins lucrativos? Quem valoriza os estudos avançados ou quem os vê como um estorvo de alto custo e sem retorno imediato? Quem quer educação superior ou quem quer superstição superior?
Se, por um lado, as respostas a estas e a outras perguntas tornam inócua a discussão sobre qual das modalidades é melhor ou pior, elas também nos dizem, de forma muito enfática, que as duas modalidades podem ter qualidade pior ou melhor do que hoje têm, a depender do que pensam, dizem e fazem os que cuidam delas.
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Dilvo Ristoff é doutor em literatura pela University of Southern California, nos Estados Unidos. Foi diretor de Estatísticas e Avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diretor de Educação Básica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e diretor de Políticas e Programas da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Foi também reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul. É autor e coautor de inúmeros livros, entre eles, Universidade em foco − reflexões sobre a educação superior (Editora Insular, 1999), Neo-realismo e a crise da representação (Insular, 2003) e Construindo outra educação: tendências e desafios da educação superior (Insular, 2011). Atualmente ministra aulas e orienta dissertações no Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).