Modelo implementado no Estado de SP em 1989 prevê autonomia total baseada na geração de superávits que permitem planejar o futuro e financiar projetos de longo prazo
As universidades estaduais paulistas e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) poderão perder R$ 1,36 bilhão em recursos caso seja aprovado o Projeto de Lei 529/2020 do governo de São Paulo, que estabelece medidas de ajuste fiscal do Estado. Se aprovado, o projeto vai obrigar a paralisação de pesquisas científicas, inclusive sobre a covid-19, em um momento de pandemia e crise econômica, alertam os cientistas.
O PL foi encaminhado dia 12 de agosto à Assembleia Legislativa estadual (Alesp) e está em fase de negociação política. A presidência da Alesp colocou em pauta na segunda-feira (28/9), mas a oposição conseguiu adiar a votação.
O projeto é amplo e prevê medidas polêmicas, como a extinção de dez estatais que prestam serviços relevantes à população, entre elas uma fábrica de remédios, a superintendência de controle de endemias e a empresa de transportes urbanos. Em seu artigo 14, o PL determina que o superávit financeiro das autarquias e das fundações será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual. Isso atinge em cheio a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), além da Fapesp, que é o maior e mais importante órgão de apoio à pesquisa entre os estados do País. O superávit das três universidades somado é da ordem de R$ 800 milhões, enquanto o da Fapesp é de R$ 560 milhões.
No dia 17 de agosto, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) enviou uma carta aos deputados da Alesp contra o PL 529, alertando que sua aprovação levará à paralisação da maioria das atividades científicas do Estado. “São Paulo deve seu destaque econômico atual no País ao seu sistema de universidades públicas em conjunto com a Fapesp”, ressaltou a SBPC.
“É grave porque quando falta dinheiro, a primeira área da qual eles querem tirar é de onde se produz conhecimento, ciência e tecnologia”, critica a cientista Vanderlan Bolzani, presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp). “É difícil entender a visão curta dos nossos políticos”, afirma. Ela lembra que a universidade é onde se formam os melhores quadros profissionais do País, que têm dado respostas aos maiores desafios científicos como, por exemplo, a produção de etanol que permitiu ao Brasil ter hoje a maior frota de carros flex do mundo.
Em meio à pandemia, diz Bolzani, as universidades paulistas já apresentaram vários avanços na identificação e tratamento da covid-19. “Aqui foi feito o mapeamento do genoma do novo coronavírus, por uma pesquisadora da USP, e daqui saíram os jovens que montaram suas pequenas empresas de base tecnológica e estão produzindo respiradores”, exemplifica. “Isso não é à toa. Isso é investimento em ciência e tecnologia. Não é gasto, não é custo jamais, em lugar nenhum”, conclui a presidente da Aciesp e conselheira da SBPC.
O biólogo Sandro Roberto Valentini, reitor da Unesp, destaca que, além de um grave ataque à educação, à autonomia universitária e à pesquisa científica, o artigo 14 não se justifica nem mesmo do ponto de vista financeiro ou de gestão pública. Após a aprovação da Constituição de 1988, que garantiu a autonomia universitária em seu artigo 207, o Estado de São Paulo estendeu essa autonomia a todos os aspectos (didático, acadêmico, financeiro e de gestão) em sua própria Constituição, que é de 1989, lembra Valentini.
Por esse modelo, as universidades e a Fapesp são financiadas por um percentual da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Bens e Serviços (ICMS) e com esses recursos são obrigados a bancar todos os custos – inclusive de pessoal ativo e inativo, o que as diferencia das federais, cuja folha de funcionários é responsabilidade do Tesouro Nacional. A partir de superávits obtidos ao longo desse tempo, as instituições formaram reservas que permitem planejar o futuro, principalmente enfrentar os momentos de queda de arrecadação.
“A universidade não é uma fábrica, você não pode simplesmente fechar uma linha de produção, desligar tudo, apagar as luzes e demitir os funcionários. Formamos profissionais qualificados, pesquisadores, cientistas e intelectuais e temos que manter essas infraestruturas, para isso servem as reservas”, reitera Valentini.
A Fapesp também se financia com um percentual da arrecadação de ICMS (2%) garantido por um dispositivo da Constituição paulista. Em nota divulgada dia 20/8, a Fapesp informou que nos últimos cinco anos recebeu do Tesouro do Estado um valor de R$ 5,7 bilhões e despendeu um total de R$ 6,2 bilhões em seus programas de bolsas, auxílios a quase 25 mil projetos, infraestrutura e colaboração com empresas. “As reservas passadas garantiram o pagamento da diferença”, afirma a nota.
Um dos projetos mais importantes financiados pela Fapesp são os Centros de Pesquisa e Inovação e Difusão (Cepids). São 17 centros no total, agregando 22 pesquisadores em áreas estratégicas, como problemas das metrópoles, neurociência, genoma humano, células-tronco e computação, entre outros.
O físico Glaucius Oliva, professor do Instituto de Física de São Carlos, é coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos, um dos Cepid da Fapesp. Ele diz que será grande o impacto do PL 529 para seu grupo que pesquisa o uso de biodiversidade na produção de fármacos.
“É um projeto de longo prazo, que começou em 2013 e vai até 2024, no qual têm sido aplicados R$ 3 milhões em média por ano, entre bolsas de estudos, equipamentos e insumos”, diz Oliva. O Cepid que coordena, conta ele, tem resultados importantes na área molecular de alimentos e foi o primeiro a aplicar pesquisas junto ao Sirius, o acelerador de partículas do tipo síncrotron, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. “O que vai ser do projeto se a Fapesp não puder cumprir com os compromissos de investimentos? ” questiona Oliva.
Fonte: Jornal da Ciência