Por Claudia de Lima Costa
Fiquei pasma ao ler o artigo opinativo do Prof. Marcelo Carvalho, publicado no site da APUFSC em 10/08/2020 e intitulado “Pela defesa da vida contra a crueldade do aborto.” Primeiramente, fiquei pasma pela APUFSC ter divulgado um texto que, a meu ver, fere suas próprias diretrizes éticas e
editoriais com considerações que mostram “desrespeito aos direitos fundamentais e à dignidade humana.”
A menina de 10 anos que sofria violência sexual por um tio desde os 6 anos – e que abortou amparada pela lei que garante seus direitos – foi, pelo autor, desrespeitada em sua dignidade ao ser reduzida a um mero útero que deveria gestar um feto resultado de estupro. Ofendeu os/as servidores/as da saúde e quaisquer outros/as que cumpriram com a lei, quando os/as chamou de “pró-abortistas.”
Ofendeu a comunidade universitária feminina e feminista quando afirma que, diante do “dilema” de salvar a vida da menina de 10 anos ou salvar um feto resultado de um estupro, a solução para ele é “simples”: segundo o autor, “estamos assim diante de duas situações espinhosas, mas que são muito simples de serem entendidas.” Ancorado em uma perspectiva masculina que se julga cheia de certezas, o professor assinala a violência que o aborto faz ao feto sem voz. Porém, sequer leva em consideração, a não ser au passant, a voz sofrida e silenciada da menina de 10 anos, vítima de sucessivos estupros.
Fala da crueldade do aborto quando verdadeiramente cruel foi o modo como abordou o que considerou “um dilema”: a menina não teve a possibilidade de decidir se queria ou não dar à luz, já que foi somente foi exposta aos argumentos “abortistas” (ou seja, argumentos dos direitos que a lei lhe garante) e não às ponderações dos/as religiosos/as, pastores/as, evangélicos/as etc que se dizem “pró-vida”. Ignora o fato de que essas pessoas assediaram a menina e sua avó tanto na casa quanto no hospital, tentando dissuadi-la do aborto. Foi necessário que uma rede de apoio de mulheres se mobilizasse para proteger a menina, que entrou no hospital escondida no porta malas do carro que a transportava para evitar a violência daqueles e daquelas para quem o feto está acima da própria vida de quem o carrega.
Não importa que fosse uma menina de 10 anos, sempre abraçada a seus dois bichinhos de pelúcia, metáforas da própria infância. Para o professor, a vítima de tamanha e indescritível violência deveria ouvir os argumentos dos “pró-abortistas” e dos “pró-vida”, analisá-los cuidadosamente antes de tomar uma decisão, que segundo ele seria, obviamente, a de ser mãe aos 10 anos de idade mesmo que sua própria vida estivesse potencialmente em risco.
Fiquei também pasma com a argumentação do autor sobre o que é humano e desumano. Utilizou ideias especistas sobre a racionalidade dos humanos e a irracionalidade dos animais (em cujo lugar colocou os que chamou de “pró-abortistas”), mostrando total desconhecimento dos debates atuais sobre o que é humano e o que é racionalidade. Acredita no telos de uma natureza humana (ocidental, é claro) caminhando progressivamente da selvageria rumo ao ápice da nobreza e da compaixão em um processo civilizatório tipicamente patriarcal, já que meninas e mulheres, especialmente as negras e pobres, sempre foram excluídas de clube tão nobre. Mas qual nobreza e compaixão encontramos nos argumentos do texto?
Vemos apenas que o autor fez um caminho argumentativo tortuoso, ancorado em premissas ingênuas do excepcionalismo humano e em perspectivas excludentes, apenas para expressar sua visão, vinda do lugar de fala masculino, branco e de privilégio, de que a vida do feto se sobrepunha à vida e ao corpo de uma menina negra de 10 anos. Do cume de sua nobreza, não mostrou piedade pelos sucessivos estupros da menina, violências estas que certamente lhe trarão sérias sequelas psicológicas. Falar em dilema nesse caso e reduzir a menina a um útero foram, para mim, ironicamente, a maior desumanidade e falta de compaixão do autor. Termino com a pergunta que a Profa. Teresa Kleba Lisboa intitulou seu contundente artigo de 19/08, acessível nesse site: “Onde estão os homens responsáveis pelos estupros de mulheres e meninas?”
Claudia de Lima Costa é professora no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC
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