Por Teresa Kleba Lisboa
Falar de aborto é transitar por uma experiência particular e pessoal de meninas e mulheres. Esta prática afeta um número dificilmente quantificável de meninas e mulheres em todo o mundo devido à clandestinidade na qual é praticado. As meninas e mulheres que recorrem à interrupção legal ou ilegal da gravidez o fazem porque ou foram violentadas, estupradas por homens – pais, padrastos, tios, primos, avôs, padres, pastores entre outros, ou estão diante de uma incapacidade de assumir a maternidade em um determinado momento de suas vidas. São milhões no mundo e pertencem a todas as esferas de idade, classe social, raça/etnia, religião, condição conjugal, território ou outra condicionalidade.
Se é uma experiência de meninas e mulheres, porque tantos homens têm que se meter? O grande paradoxo é: o que é feito dos homens que estupraram, violentaram, participaram da fecundação dessas meninas e mulheres, na hora da sociedade entrar no terreno dos juízos de valores, da moral e das proibições, nos países em que o aborto está criminalizado e penalizado? Na maioria das vezes estão foragidos, desaparecem e são eximidos totalmente de sua responsabilidade. A grande questão que impera no Brasil é a impunidade! A impunidade é umas das maiores causas do aumento do índice das violências e, entre elas, o estupro de meninas e mulheres!
Por outro lado, os homens se fazem presentes, em grande escala e de maneira incisiva, quando se trata dos juízes, advogados, desembargadores, dos médicos, dos padres e pastores de diferentes credos religiosos, pais de família, jornalistas, parentes vizinhos e amigos que se outorgam a si mesmos a capacidade de ajuizar, castigar, proibir, condenar a todas as mulheres reduzindo-as a úteros que deverão assumir a gestação até o final, pelo simples fato de honrar a continuidade da espécie!
Ao invés de se reunirem na frente do Hospital para incriminar a menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio, porque não fazem um movimento, passeatas, carreatas para encontrar o estuprador que está foragido? Porque os gritos não são: “justiça seja feita, que o estuprador seja punido, preso!” – evitando assim que mais centenas de meninas e mulheres passem pelo mesmo sofrimento? Por que o movimento não é contra a pedofilia, a violência sexual e pelo cumprimento do que está na Lei? Que tipo de justiça existe neste país?
Esses grupos agem por meio do medo que controla, do olhar que paralisa, dos costumes que submetem e reprimem a liberdade das mulheres e a liberdade é uma característica da cidadania.
Constata-se que a concepção de cidadania já nasceu distorcida uma vez que sempre foi considerada (e de várias formas continua sendo), um status que um poder confere àqueles membros da comunidade que possuem determinadas características sexuais (homens), etárias (adultos), étnicas (as do grupo dominante e majoritário) ou nacionais (não migrantes).
Esta característica da cidadania, de acordo com Francesca Gargallo (2011, p. 29) está na base da dinâmica de exclusão político jurídica das mulheres como sujeitos sociais em relação de reciprocidade com os homens: mulheres excluídas da cidadania, impossibilitadas a constituir-se em sujeitos sexuados da política (…), organizadas como seres de serviços para o sujeito masculino e não como sujeitos mulheres em espaços de comportamento, deveres, simbolizações e expectativas diferenciadas rigidamente (hierarquizadas) com base na aparência externa de seus genitais.
Apesar de muitas lutas que permitiram às mulheres, na modernidade ocidental, a conquista do direito ao voto, à educação e ao status de sujeito político, ainda hoje algumas práticas políticas e de organização social do Estado desconsideram a sua cidadania.
Para advogada Alda Facio (2009), enquanto o corpo das mulheres estiver de fato controlado pelo sistema de violências misóginas imperantes, pelas guerras, submetimentos, escravidão sexual e laboral, principalmente na América Latina e nos países em desenvolvimento, somente a igualdade entre mulheres e homens entendida como NÃO discriminação (Convenção Belém do Pará – 1979, adotada em 185 países) pode pôr um limite à conspiração conservadora que está “batendo de frente” com os tímidos avanços em matéria de garantias individuais conquistadas pelas latino- americanas durante o século XX.
O fato que nos aflige é que o aborto inseguro é a 5ª causa de mortes de meninas e mulheres no Brasil. Segundo dados apontados em pesquisa, a curetagem (procedimento cirúrgico realizado após abortamento) foi a cirurgia mais realizada pelo SUS em 2019. O fato concreto é que as mulheres abortam, e diante da criminalização e do alto custo cobrado pelas clinicas clandestinas, as mais empobrecidas, na sua grande maioria, mulheres negras, morrem ou ficam com graves sequelas.
A forma como as mulheres são tratadas em observância com as leis – Lei Maria da Penha, Programa Rede Cegonha, Criminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, tentativas de aprovação do “Estatuto do Nascituro’, entre outras – as leva à conclusão de que não podem obedecer normas de cidadania universal se devem obedecer às normas privadas particulares, propostas por homens e levadas a cumprir por homens.
Excluir as mulheres do acesso à liberdade implica permitir abusos que se incrementam segundo descendem as hierarquias dos cidadãos (geralmente homens) no interior do Estado, hierarquias que mantém esse mesmo Estado de direito.
Mais uma vez é procedente a objeção de Gargallo (2011, p. 35): se a Lei segue sendo devedora das mulheres como seres complementários, não pode considera-las responsáveis na mesma magnitude que os homens, entendidos como seres definidores da cidadania. Se segue considerando que as mulheres são portadoras de um corpo natural à disposição do homem e do Estado, esperará que procriem e não que se comportem como cidadãs capazes de aportar o conjunto da sociedade, seus valores com respeito à vida e a saúde, de cuidado da natureza e do maio ambiente, do gosto pelo diálogo e pelas artes.
Trata-se de um aparato jurídico e político sutil e danoso na medida em que os mesmos homens exercem sua supremacia sobre os corpos das mulheres de geração em geração, para detê-las no papel de gênero que lhes foi atribuído pela sociedade e impor um comportamento de submissão e obediência que satisfaça seus interesses, e através delas, para controlar toda a hierarquia de cidadãos que não alcançam a igualdade e a liberdade próprias da cidadania.
Homens, tirem as suas mãos violentas de nossos corpos!
Tirem seus rosários de nossos ovários!
Do nosso corpo nós, mulheres, entendemos, decidimos e resolvemos!
PelaVidadasMulheres #VivaseLivresNosQueremos
Referências:
FACIO, Alda. “Derecho a una vida libre de violencia de género. Derechos
reproductivos y la responsabilidad estatal”. Ponencia presentada el 5 de marzo en San José da Costa Rica. Costa Rica, 2009.
GARGALLO, Francesca. La justicia, las demandas de ciudadanía y las frustraciones ante los derechos humanos de las mujeres. In: ¿Y usted cree tener derechos? Acceso de las mujeres mexicanas a la justicia. Programa Universitario de Estudios de Género, UNAM, México, 2011, p. 25-40.
Teresa Kleba Lisboa é Coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC) e Professora Titular Aposentada, atuando no Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC).
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