Governo federal estabeleceu áreas prioritárias para projetos de pesquisa; regra pode afetar financiamento de programas de pós da universidade
Alterações fundamentais nas regras para concessão de bolsas e recursos das principais agências de fomento à pesquisa do governo federal poderão impactar profundamente as atividades de pesquisa e pós-graduação na USP e em outras instituições públicas de pesquisa a partir deste ano, segundo fontes da academia. Em alguns casos, os programas mais prejudicados deverão ser, justamente, os de maior excelência em pesquisa.
No âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), as mudanças remetem a uma portaria de março deste ano (Portaria 1.122), que estabeleceu as prioridades da pasta, “no que se refere a projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e inovações”, para o período de 2020 a 2023. O texto define 25 áreas prioritárias de pesquisa, com forte viés tecnológico, e determina que essas prioridades sejam observadas por todas as entidades vinculadas ao ministério — entre elas, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), duas agências de fomento essenciais ao desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil.
Segundo o texto, CNPq e Finep “deverão promover, no que couber, ajustes e adequações necessários nas respectivas linhas de financiamento e de fomento, para incorporar, em seus programas e ações, as prioridades estabelecidas na presente portaria”.
O problema é que grande parte das pesquisas desenvolvidas nos programas de pós-graduação da USP — e, possivelmente, de outras universidades públicas de pesquisa Brasil afora — não se encaixa nessas prioridades de viés tecnológico, segundo um levantamento feito pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) da Universidade.
Mais de 50% dos coordenadores consultados pela PRPG disseram que “apenas uma parte minoritária” ou “praticamente nenhuma” das áreas de pesquisa de seus respectivos programas constava na lista de prioridades do MCTI. No caso das Ciências Humanas, esse índice chegou a 92%, comparado a 37% nos programas de Ciências da Vida e 52%, nas Ciências Exatas.
Isso não significa que grandes temas como Inteligência Artificial, indústria, agronegócio e saúde — que fazem parte da lista do MCTI — não estejam contemplados nos programas de pós-graduação da USP. A questão é que as pesquisas realizadas nas universidades costumam ser mais focadas na geração de conhecimento (ciência básica), e não em desenvolvimento tecnológico, que tradicionalmente é uma função exercida pela indústria. Também não costuma haver um direcionamento institucional daquilo que deve ser estudado; cada pesquisador investiga aquilo que considerar mais importante ou interessante dentro da sua área, conforme preconiza a chamada “liberdade de cátedra”.
Assim, caso a distribuição de recursos do CNPq — seja na forma de bolsas ou financiamento de projetos — passe a ser dirigida preferencialmente para essas Áreas Prioritárias, como prevê a portaria do MCTI, isso exigirá todo um replanejamento e redirecionamento da pós-graduação universitária para atender a essas prioridades. “O financiamento é um indutor de comportamento”, diz o pró-reitor de Pós-Graduação da USP, Carlos Gilberto Carlotti Júnior. “Ou o pesquisador vai ter que mudar de área, ou vai ficar sem financiamento.”
Excelência ameaçada
Os programas mais afetados deverão ser, justamente, os mais antigos e de maior excelência em pesquisa, porque são eles que mais dependem de bolsas e recursos do CNPq para suas pesquisas, segundo o pesquisador Raul Abramo, professor do Departamento de Física Matemática do Instituto de Física da USP. “Quanto maior a qualidade da pesquisa, maior é a dependência do CNPq”, afirma ele. “Quem mais perde com isso, portanto, são os grupos de excelência.”
Abramo é um pesquisador internacionalmente reconhecido no campo da cosmologia, ciência que se dedica ao estudo da estrutura e do funcionamento básicos do Universo — exemplo de uma área de pesquisa fundamental que não consta na lista de prioridades do MCTI.
“Na USP (possivelmente no Brasil), não há praticamente nenhum departamento ou programa de pós-graduação de qualidade que não será afetado de modo significativo por mudanças no nível de financiamento de bolsas pelo CNPq — mesmo aqueles programas que já são atuantes nas novas áreas prioritárias do CNPq”, diz uma carta preparada por Abramo, em nome da PRPG, e enviada à presidência do CNPq em junho.
A USP tem 264 programas de pós-graduação, com 14 mil alunos de mestrado e 15 mil de doutorado. Cerca de 25% dos bolsistas da Universidade são financiados pelo CNPq.
Veja o texto na íntegra: Jornal da USP