Por Fábio Lopes da Silva
Universidades tendem a ser instituições fechadas sobre si mesmas, e é necessário que seja assim: o trabalho intelectual de fato exige recolhimento, reclusão e autonomia. Mas há um limite para isso, um ponto a partir do qual as coisas se complicam: levado longe demais, o hermetismo vira alienação, infantilidade e insensibilidade em face de tudo o que existe para além dos muros dos campi. Ora, creio que foi precisamente o ultrapassamento desse limite o que se registrou em tempos recentes nas universidades públicas brasileiras.
Depois de oito anos de penúria sob o governo FHC, as instituições federais de ensino superior conheceram uma longa fase de distensão e trégua. No pacto proposto por Lula – que durou enquanto a alta do preço internacional das commodities o financiou –, universidades como a UFSC viveram sua primavera: bons salários, bolsas abundantes, verbas razoáveis para financiamento de infraestrutura. A ilusão de que a Academia estava protegida e minimamente contemplada para sempre tomou conta da comunidade universitária. Acalentados por essa sensação de aconchego e estabilidade, tornamos ainda mais espessas as paredes da bolha dentro da qual desde sempre trabalhamos.
No entanto, como não poderia deixar de ser, chegou o momento em que o valor de nossos produtos primários de exportação despencou, e o governo petista viu derreterem-se as bases do acordo político e econômico que o sustentava. Uma grande crise – que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro – varreu o país. Habituados ao marasmo do período lulopetista, os universitários assistiram a tudo perplexos e paralisados, como quem acorda de um sonho bom e insiste em querer voltar a dormir.
Em face da estridência do Capitão no poder, cabia-nos uma tarefa urgente: encontrar os caminhos capazes de nos reconduzir a certos deveres cívicos elementares e à luta social por nossos direitos e interesses, seja refletindo seriamente sobre as novas condições políticas e sociais no Brasil, seja transformando essa reflexão em práticas (a começar por inciativas muito simples, como adensar nosso compromisso com o serviço público, recompor os sindicatos docentes ou retomar o papel histórico de associações científicas como a SBPC). Mas não foi isso que aconteceu. Loucamente, seguimos encerrados em nossos casulos, com a desculpa de que fantasmáticos protestos nas redes sociais eram suficientes para pagar nossa dívida com o engajamento social e político. A dura verdade é que, de modo completamente ingênuo e irresponsável, no melhor estilo pequeno-burguês, apostamos na homeostase eterna do sistema e, quando isso se foi, encontramos um jeito de continuar em nossas conchas – ou de, na verdade, enfurnarmo-nos ainda mais nelas, sob a alegação de que, do lado de fora, fascistas sanguinários agora salivavam à espera de carne fresca.
Só que a vida, com sua dinâmica implacável, continuou batendo à porta. Eis que veio a pandemia. Respostas contundentes se fizeram urgentes, mas a universidade não as tinha – ou, a rigor, as tinha, mas se recusou a mobilizá-las, escolhendo mergulhar em longo período de hibernação, em uma forma ainda mais exasperada e caricatural de hermetismo. O pior de tudo foi a justificativa que se deu para tamanha paralisia: alardeou-se aos quatro ventos que foi tudo em nome de proteger os alunos, que teriam coisa mais importante a fazer do que gastar tempo e energia frequentando aulas virtuais ou coisa que o valha. Tudo bem que essa moratória tenha sido necessária nas primeiras semanas de adaptação às novas rotinas – mas com o passar do tempo foi ficando claro o quão suspeito era o surto de humanismo que contagiou a instituição (tanto mais se se considera o fato de que, na normalidade, a absoluta maioria dos professores nunca deu a menor bola para as dificuldades objetivas e subjetivas dos alunos).
Em qualquer dicionário, ajudar pessoas é fazer algo efetivo por elas, menos na UFSC durante a pandemia, na qual o verbo passou a querer dizer ‘inação’. A única maneira de alcançar os alunos era (e continua a ser) constituir – por meio de aulas virtuais, obviamente – redes objetivas de contato com eles. Mesmo os discentes que não têm acesso à internet só podem ser realmente socorridos se alguém que já faça parte dessas redes os conhecer e de algum modo os trouxer para o interior delas. Tudo o mais é empulhação, covardia e preguiça disfarçados de sentimentos nobres.
Cada um de nós é responsável por essa omissão de socorro, essa traição à causa pública. Mas as coisas certamente poderiam ter sido diferentes se tivéssemos uma liderança a altura do desafio que a pandemia impôs. Não foi o caso. O reitor, vergonhosamente, empurrou com a barriga a solução do problema o quanto pôde, até não mais ser possível adiar a decisão desde sempre escrita nas estrelas. Sob pressão da sociedade, quatro meses depois de incontáveis sondagens e centenas de páginas de relatórios e pareceres, o Sr. Presidente do Conselho Universitário acaba de fixar a data do retorno às atividades de ensino em regime remoto. Contudo, não faltou ao ato um gran finale compatível com a tragicomédia que lhe precedeu: o prazo de preparação estabelecido foi de nada menos do que espantosas cinco semanas, como se já não tivéssemos tido tempo mais do que suficiente para nos habilitar aos novos meios e instrumentos.
Inês é morta. A UFSC perdeu uma oportunidade incrível de realmente acolher seus alunos e de, mais que isso, lançar-se como vanguarda institucional, política, intelectual e ética, em um país tão carente dessas coisas. Em vez disso, entregou-se à inércia, à lentidão dos cágados, ao silêncio, à falta completa de ambição e ousadia.
A pandemia provavelmente vai ser superada em futuro próximo. Mas a recessão sobreviverá a ela, assim como a crise política que agita o Brasil. Serão tempos duros. Tempos em que separar as crianças dos adultos vai ser mais crucial do que nunca. Temo que, na universidade, teremos que enfrentar esses obstáculos todos em companhia da pusilanimidade com a qual namoramos em tempos petistas, noivamos em tempos bolsonaristas e nos casamos na pandemia.
Fábio Lopes da Silva (DLLV-CCE-UFSC)