Por Raul Valentim da Silva
Os docentes desempenham nas universidades atividades que podem ser enquadradas em quatro segmentos: ensino, pesquisa, extensão e gestão. O ensino pode ser desdobrado em pré-universitário, graduação e pós-graduação. Quando me formei em engenharia, em meados do século passado, os meus professores atuavam apenas na graduação e na administração universitária.
Sendo docentes de tempo parcial os professores da Escola de Engenharia da UFRGS não tinham problemas com a extensão, pois a atuação profissional externa assegurava um amplo conhecimento da respectiva área de ensino. Raramente desenvolviam alguma atividade que pudesse se enquadrada efetivamente como pesquisa. Como aluno cheguei a ganhar um prêmio por ter desenvolvido uma pesquisa. Na realidade foi apenas um experimento para comprovar um determinado conhecimento já devidamente estabelecido.
Quando cheguei, na UFSC, em 1965, o curso de engenharia mecânica, implantado pelos docentes da UFRGS, estava funcionando nesses mesmos moldes. O professor Stemmer que chegou neste mesmo ano para ser diretor da nossa Escola de Engenharia havia realizado um programa de pós-graduação na Alemanha onde teve contato com uma universidade que atuava também em pesquisa e extensão.
Tive oportunidade de acompanhar de perto o nascimento da pesquisa e da pós-graduação na UFSC, tendo coordenado a implantação do primeiro mestrado na região sul do Brasil. Posteriormente atuei na coordenação geral de pesquisa da pró-reitoria de pesquisa e pós-graduação com os pró-reitores Paulino Vandresen e Silvio Coelho dos Santos. Nas considerações a seguir vou me limitar ao âmbito das engenharias.
Na constituição federal de 1988 a extensão foi explicitada como uma atividade indissociável do ensino e da pesquisa, formando o famoso tripé da atuação docente, complementado com a gestão universitária. Apesar das críticas e das dificuldades que apareceram, considero este modelo bastante apropriado, ao menos, para áreas profissionais com ampla interação com os setores produtivos de bens e serviços, públicos e privados, como as engenharias.
Hoje um docente orientador na pós-graduação atua com uma equipe de alunos de graduação, mestrado e doutorado que desenvolvem atividades de coleta e geração de conhecimentos, especialmente em seus trabalhos de conclusão de cursos. Os professores também atuam em bancas no exame de trabalhos desenvolvidos por alunos orientados por colegas. Assim novos conhecimentos absorvidos pelos docentes podem ser repassados ao ensino, propiciando uma constante e salutar renovação tanto na graduação como na pós-graduação.
A principal motivação desta minha manifestação diz respeito às novidades aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação e pela Capes referentes à curricularização da extensão e a uma nova forma de avaliação da pós-graduação. Considero ambas bastante promissoras, permitindo nas engenharias a abertura de oportunidades para importantes interações com as reais problemáticas da sociedade brasileira.
Na noite passada tive mais uma demonstração da extraordinária capacidade criativa da mente humana. Em sonho foi criado um problema que não é real. Sonhei que precisava ir a Porto Alegre com urgência. Se este fosse o caso, certamente optaria pelo deslocamento com carro próprio. No sonho as alternativas que existiam eram apenas duas: de ônibus ou de avião. A viagem de avião foi desconsiderada por causa da Covid-19, mas a alternativa do ônibus foi aceita sem restrições. Passei então a dialogar no sonho pessoalmente com o gerente de uma empresa de ônibus para viabilizar minha viagem. Felizmente acordei e o problema acabou.
Este é o caso de muitas pesquisas universitárias. Ocorrem abstrações incompatíveis com a realidade circundante. Sendo a UFSC uma universidade pública federal, o correto seria utilizar a capacidade criativa da comunidade universitária para gerar alternativas reais para os problemas concretos da sociedade brasileira. A Embrapa é um caso mundial de sucesso nesta linha de trabalho. As interações com a Embraco e com a WEG constituem outros exemplos de ligações bem sucedidas. Começando como pequenas empresas estas duas indústrias conseguiram, com o correto apoio universitário, alcançar destaque de classe mundial.
A extensão universitária, a meu ver, está no cerne desta problemática. O Japão foi arrasado na segunda guerra mundial. Trilhou, sem benesses da natureza, o caminho da recuperação e se tornou em poucas décadas uma nação econômica e socialmente invejável. Começou absorvendo tecnologias e criando soluções próprias para seus problemas reais. Depois desenvolveu ciência adequada para se tornar líder mundial em setores muito bem escolhidos. A China está seguindo um caminho semelhante.
Considero a implantação da pós-graduação no Brasil como um caso de sucesso acadêmico. Em poucas décadas conseguimos passar de uma situação em que os professores ingressavam na universidade apenas com a graduação para outra em que é possível escolher os melhores dentre múltiplos doutores. Infelizmente os que não são aproveitados no magistério não têm conseguido boas ocupações no Brasil e muitos deles acabam migrando para o exterior. Faltam enlaces apropriados para que os egressos da pós-graduação nas engenharias possam ser bem aproveitados pelos setores produtivos nacionais.
Os critérios de avaliação da pós-graduação que vinham sendo adotados pela Capes privilegiavam exclusivamente as publicações e as citações em renomadas revistas internacionais. Tais critérios são perfeitamente adequados para áreas como matemática e física. Para as engenharias, estes referenciais acabam vinculando o desenvolvimento das pesquisas universitárias brasileiras a temas de interesse predominantemente das nações desenvolvidas do hemisfério norte. As políticas editoriais das revistas renomadas são criadas pelos pesquisadores destas nações e servem aos seus interesses específicos.
Sem extensão apropriada, a França em meados da década de oitenta se deu conta de que suas conceituadas universidades estavam trabalhando em ciência para desenvolver conhecimento que estava sendo aproveitado principalmente pelas multinacionais dos Estados Unidos. No Brasil atual ainda estamos carentes dessa conscientização. As mudanças ocorridas nos critérios de avaliação da Capes podem ser bem aproveitados para criar vínculos mais efetivos e de maior eficácia com a realidade dos sistemas produtivos nacionais.
A vinculação da pesquisa pós-graduada com interesses econômicos, predominantemente do exterior, gera também distorções na formação em nível de graduação. A curricularização da extensão pode ser um remédio, ao menos paliativo. A criação de vínculos precoces dos alunos com suas respectivas profissões pode gerar interações benéficas para os egressos e para a sociedade catarinense e brasileira.
Na UFSC existe uma pró-reitoria de pesquisa e uma pró-reitoria de extensão. Na constituição está especificada uma indissociação entre estas duas importantes atividades universitárias. Como separar o que deve ser indissociável? Os conceitos de extensão e pesquisa precisam ser devidamente caracterizados. O problema é que tal caracterização não pode ser uniforme em todas as áreas de atuação da universidade. A medicina é muito diferente da pedagogia.
Uma caracterização possível está associada com a separação entre o conhecimento consolidado e aquele em elaboração. Os livros geralmente mostram os conhecimentos já comprovados e que podem ser usados na graduação. Infelizmente, o alto custo dos livros mais atualizados e as dificuldades financeiras dos alunos e das próprias bibliotecas universitárias acabam inviabilizando seu uso mais generalizado. As publicações das melhores obras em inglês é uma significativa dificuldade adicional para os alunos brasileiros.
O mestrado pode ser colocado num nível intermediário em que os conhecimentos já disponíveis passam a ser organizados para publicação em novos livros. Os cursos de especialização poderiam ser utilizados para atualização dos profissionais já formados e como uma realimentação para os docentes, mas foram inviabilizados na UFSC por problemas de financiamento. O doutorado busca levar os alunos até a respectiva fronteira do conhecimento, propiciando condições efetivas para a geração de novos conhecimentos através da pesquisa.
A extensão deve ser sempre vista como uma via de mão dupla. Por ela devem transitar inicialmente as necessidades relevantes da sociedade. Tais necessidades podem ser atendidas inicialmente com os conhecimentos disponíveis na própria UFSC. Numa segunda instância devem ser buscados conhecimentos disponíveis nos livros e nas revistas científicas. Entendo que nesta etapa ainda estamos no contexto da extensão. Só deveríamos adentrar a pesquisa propriamente dita quando precisamos resolver um problema que ainda não foi resolvido.
Os temas de pesquisa para as dissertações e especialmente para as teses de doutorado, ao menos nas engenharias, deveriam advir de problemas previamente identificados como relevantes para os brasileiros e para a humanidade. A contextualização dos docentes, através da extensão, deve merecer a devida atenção. A curricularização da extensão na graduação pode ser um mecanismo muito eficaz neste encaminhamento.
Raul Valentim da Silva – professor aposentado
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