Por Dilvo Ristoff
Os números da expansão da educação superior mundo afora nos últimos anos impressionam. Estima-se que, em 2025, o número de matrículas chegue a 263 milhões. No ano 2000 este número era de 97 milhões e, em 2019, já superou a marca de 223 milhões. Esse crescimento vem de mãos dadas com o ensino a distância, o e-learning, os MOOCs, as universidades abertas, a oferta privada e a proliferação da educação transfronteiriça.
Esta combinação acendeu sinais de alerta com relação à garantia da qualidade. Será que o curso de uma importante instituição americana, ofertado numa pequena cidade do interior do Peru tem a mesma qualidade acadêmica do curso ofertado na matriz? E será que é possível validar os créditos de um estudante que concluiu a graduação numa pequena faculdade de uma cidade do interior do Pará num programa de mestrado ou doutorado na Califórnia ou Estocolmo? Como a internacionalização econômica estimula a mobilidade de indivíduos e como as questões planetárias demandam intensa cooperação de cientistas, professores, pesquisadores e estudantes, essas questões deixam de ser triviais e exigem ações no sentido de assegurar que a educação não se torne um mero comércio a serviço de empresas inescrupulosas. Neste contexto, a construção da confiança mútua entre os atores educacionais e os governos de diferentes países é inadiável.
Surge, assim, a necessidade de se construir redes e parcerias universitárias internacionais e de promover, com as devidas salvaguardas, intensa mobilidade acadêmica. O aumento da cooperação regional em aspectos como a garantia de qualidade e o reconhecimento de diplomas, títulos, créditos e estudos são um primeiro e importante passo para o desenvolvimento de redes de pesquisa e para a oferta de programas conjuntos de outorga de títulos, entre outros.
A busca por essas salvaguardas tem se tornado intensa nos últimos anos. A promoção de uma educação superior globalizada, que busque trazer benefícios para todos os parceiros, implica principalmente em se conhecer melhor e confiar um no outro — tarefa nem sempre fácil. A confiança mútua, no entanto, não cai do azul do céu. Ela precisa ser construída. Na área da educação, ela deriva principalmente do respeito pela avaliação da qualidade de instituições e cursos realizada nos diferentes países. Dito de outra forma, a confiança implica no reconhecimento mútuo dos resultados da avaliação e nos processos avaliativos implementados ou utilizados pelas agências de acreditação. Interligar os sistemas de garantia de qualidade dos diferentes países, mediante constantes ações em rede e do contínuo e permanente intercâmbio de diretrizes, dimensões, critérios e indicadores de avaliação, torna-se fundamental. Sem isso, a confiança mútua se enfraquece, a cooperação internacional diminui e o combate às fábricas de diploma estará condenado ao fracasso.
Se o reconhecimento de estudos realizados em outros países já encontra resistência mesmo quando ofertados por instituições prestigiosas, resistências muitos maiores existirão num ambiente em que proliferam fábricas internacionais de diplomas. Tudo isso, exige que nos conheçamos melhor e que as agências ou entidades responsáveis pela avaliação e acreditação de instituições e carreiras se unam, troquem informações e possam, assim, bem informar a comunidade acadêmica e a população em geral, alertando-as para práticas nocivas à qualidade.
Vários esforços internacionais nesse sentido têm sido feitos nas últimas décadas. Os países europeus, a América do Norte e muitos outros países do mundo têm hoje, por exemplo, relação estreita com a Rede Internacional das Agências de Asseguramento da Qualidade na Educação Superior (INQAAHE). Essa rede, sem fins lucrativos, criada em 1991, conta com a participação do Conselho de Acreditação dos Estados Unidos e da Associação Europeia para Asseguramento da Qualidade da Educação Superior, mostrando-se hoje presente em cerca de 140 países. O seu objetivo principal é estreitar os laços entre as agências de acreditação e avaliação, estimulando a criação de redes e a definição conjunta de padrões de qualidade. Desnecessário dizer que tais ações terão forte impacto sobre o reconhecimento de estudos, títulos e diplomas e, claro, facilitarão significativamente a mobilidade acadêmica interinstitucional e internacional.
No âmbito da América Latina, duas ações importantes, neste sentido, foram criadas nos últimos anos. A primeira foi a criação, em 2003, com participação brasileira, da Red Iberoamericana para el aseguramiento de la calidad en la Educacion Superior (Riaces). Esta rede conta com a participação de 18 países e de 25 agências de avaliação e acreditação. O Brasil participa da rede através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Outros países, no entanto, participam com várias agências acreditadoras e/ou avaliadoras. A título de exemplo: o Chile participa com cinco agências oficiais, o México como seis, o Paraguai com três e a Espanha com duas, deixando muito claro que diferentes países encaram de modo distinto o controle de qualidade em seus sistemas de ensino superior. Esta diversidade de sistemas, que pode ser observada dentro de um mesmo país e na região Ibero-americana, mostra quão árdua é a tarefa de construir um referencial comum de qualidade para as agências, especialmente quando se pensa no intercâmbio de estudantes e docentes em escala global. A Riaces nasce a partir da percepção de que a mobilidade acadêmica na Região demanda uma linguagem avaliativa comum: definição de procedimentos e métodos, dimensões a serem avaliadas, indicadores que devem compor instrumentos de avaliação e, sobretudo, uma harmonização maior dos critérios de qualidade das agências avaliadoras e/ou acreditadoras. A abertura desse espaço de colaboração é fundamental para o intercâmbio e o fortalecimento de boas práticas. É também condição básica para que se possa começar a falar em monitoramento e promoção da qualidade da educação superior em um contexto mais amplo do que o nacional.
A segunda iniciativa importante dos últimos anos foi a criação do Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação (Arcu-sul), no âmbito do Mercosul. Embora, formalmente homologado pelo Conselho do Mercado Comum do MERCOSUL em 2008, o processo de sua construção foi gradativo, passando por processo experimental e tendo a primeira capacitação de avaliadores ocorrido em 2003. O sistema é gerenciado pela Rede de Agências Nacionais de Acreditação (RANA). O sistema Arcu-sul avalia cursos de graduação que tenham reconhecimento oficial em seus países de origem a partir de critérios de avaliação negociados e acordados pelas Agências. Sete carreiras (Agronomia, Arquitetura, Enfermagem, Engenharia, Medicina, Odontologia e Veterinária) já tiveram dimensões, indicadores e critérios comuns definidos e já participaram do processo de avaliação. Os formuladores do processo, desde as origens, declararam a importância deste mecanismo para facilitar o reconhecimento de títulos, ampliar a mobilidade acadêmica de docentes e estudantes e aumentar a cooperação e o intercâmbio de boas práticas para a melhoria da qualidade. Embora avançando lentamente nos últimos anos, o Arcu-Sul vem se consolidando como um importante mecanismo de integração regional. O programa de Mobilidade Acadêmica Regional de Carreiras Acreditadas (MARCA) é hoje um primeiro exemplo concreto desse processo de integração regional que se inicia. Até o ano passado (2019), no âmbito do MARCA, o Brasil recebeu, por cinco meses, em suas universidades 745 estudantes dos países vizinhos e 698 estudantes brasileiros realizaram parte de seus estudos em outro país do Mercosul, aprendendo a sua língua, conhecendo o seu modo de vida, estreitando laços de amizade e pavimentando o caminho para parcerias futuras.
Esses são alguns dos esforços internacionais importantes que devem ganhar mais e mais relevância entre os envolvidos com a internacionalização da educação superior e com as grandes questões da avaliação, da acreditação e da garantia da qualidade. Por tudo isso, preocupa a atitude do atual governo brasileiro, claramente hostil às relações internacionais e ao Mercosul. Que este discurso de política isolacionista e autossuficiente não encontre guarida na academia e no congresso nacional. Que não se fechem os canais de comunicação abertos nos últimos anos. Até porque de canais de comunicação abertos dependem muitos outros importantes projetos de cooperação acadêmica e científica.
Professor aposentado do CCE
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