Por Moisés de Lemos Martins
Em todos os tempos, as comunidades humanas foram confrontadas com duas questões fundamentais. Com o problema da ordem, na tentativa de dar resposta à exigência de viver em sociedade. E com o problema da história, procurando dar conta das possibilidades para desenvolver, numa determinada época, a ação humana.
Neste aspeto, o nosso tempo não é distinto de todas os outros, embora com o surto do Coronavírus as questões da ordem e a da história tenham ganho uma particular acuidade, e mesmo um acentuado dramatismo.
É de assinalar, no entanto, que a crise da sociedade democrática, assim como a crise do humano, não foram implantadas entre nós pela pandemia viral. Foi a subversão do nosso regime de civilização que desencadeou a crise democrática e a crise do humano. Num século e meio, passámos de uma sociedade da promessa a uma sociedade “em sofrimento de finalidade” (Lyotard); e de uma sociedade da palavra e do pensamento a uma sociedade do número e da tecnologia.
O matemático e filósofo americano, Norbert Wiener, publicou em 1948, um livro premonitório a este respeito. Cibernética, ou o controlo e a comunicação no animal e na máquina lembra-nos qual é, de facto, “o rei clandestino” (Simmel) da nossa época: a engenharia e a comunicação eletrónicas, assim como os sistemas informáticos de controle. E entretanto, num híbrido de vida e técnica, o orgânico funde-se com o inorgânico, e torna-se a obsessão da engenharia, da ciência da computação, dos sistemas de controle, da biologia, da neurociência, da filosofia e da organização da sociedade.
A civilização tecnológica já nos havia feito perceber que as fundações da nossa sociedade democrática ameaçavam ruir, porque as instituições democráticas já não pareciam capazes de responder a uma promessa de comunidade. E também já tínhamos percebido que as possibilidades da ação humana haviam diminuído drasticamente na nossa época. A mobilização tecnológica já nos havia feito compreender que a ordem no mundo passara a ser ditada pelos mercados económico-financeiros. E também já havíamos compreendido que a metáfora do mercado se aplicava, agora, a todas as dimensões da nossa existência. E com a vida toda a ser organizada em função de uma competição e de um empreendedorismo qualquer, e com os indivíduos a trabalhar em permanência para a estatística e o ranking, já não acontecia apenas a crise da época, mas era o próprio sentido do humano que entrava em crise.
Quando o Coronavírus tomou de assalto a comunidade humana e se implantou no meio dela, já a metafísica, que reunia na unidade, o passado, o presente e o futuro, acabara no Ocidente. Há muito que já não era possível lançarmos um propósito para o futuro, dando-lhe um fundamento seguro. A comunidade humana já estava toda mobilizada para o presente. E as palavras da promessa, centradas no futuro, há muito que haviam sido substituídas pelos números da crise.
Vejamos o caso português. Os números do Produto Interno Bruto (PIB) era um milagre fazê-los crescer. E era o cabo das tormentas fazer equilibrar os números da Balança Comercial, de crónicos que eram os desequilíbrios entre as exportações e as importações. Os números do défice, interno e externo, mantinham-se em níveis assustadores. Os números do desemprego era a custo que os procurávamos suster. Por outro lado, os números do envelhecimento da população não paravam de crescer. E os números das desigualdades sociais alastravam, mais e mais. Também os números da quebra drástica dos índices demográficos eram preocupantes. Em todos os aspetos da vida humana, mesmo antes do Coronavírus, o que tínhamos de mais garantido eram os números do presente, que apenas assinalavam a nossa urgência numa situação de crise.
A civilização tecnológica já havia imposto à maioria dos cidadãos uma condição precária. A precariedade é mesmo uma das figuras que marcam a época, assinalando a condição de cidadãos móveis, mobilizáveis, competitivos, eficazes, e sem direitos sociais. Para falarmos como Georges Steiner, na civilização tecnológica já os cidadãos andam como quem atravessa uma “noite dos tempos”, uma noite onde a história se armazena em gigas, as emoções se processam em bits, os corpos se compõem com píxeis, e a vida toda, de bens, corpos e almas, é convertida em mercadoria, ou seja, em valor económico e financeiro.
E bem podia o nosso quotidiano atolar-se em aborrecimento e cansaço, que os ecrãs não nos davam sossego nenhum, fascinando-nos, agitando-nos e excitando-nos, num movimento em que a palavra e o pensamento não paravam de recuar diante da torrente de imagens tecnológicas, tendo nós perdido o fundamento seguro, o território conhecido e a identidade estável.
A irrupção do Coronavírus no seio da comunidade humana veio apenas carregar nas tintas da nossa precariedade, acrescentando-lhe incerteza e imprevisibilidade em doses colossais.
E nestas circunstâncias, são gigantescos os riscos que corremos como comunidade de cidadãos. Porque numa época que presta culto à técnica todas as soluções que procuramos tendem a ser tecnológicas, do teletrabalho ao e-learning, e das reuniões por Zoom, Colibri e Teams, à segurança eletrónica.
Mas a tecnologia, que pode abrir um leque de possibilidades estrondosas para a nossa época e para o humano, constitui também uma armadilha.
Veja-se o caso das redes sociais e a tensão conflitual que elas estabelecem com o pensamento, a cidadania e o sentido de comunidade. A rede social é minha. Eu construo-a e ela pertence-me. Mas coisa diferente é a comunidade. Se comunidade houver, sou eu que lhe pertenço. A rede social funciona num regime emocional, e é portanto gregária e tribal. E enquanto realidade tecnológica, a rede social fascina-me. Quanto à comunidade, é para um horizonte de promessa que ela aponta, sendo que apenas pela palavra podemos prometer, como aprendemos com Jorge Luís Borges. Portanto, a comunidade subscreve um regime de palavra e pensamento entre cidadãos que se persuadem uns aos outros sobre o melhor caminho comum a empreender.
Veja-se também o caso da segurança eletrónica. Existe, é verdade, uma relação difícil entre os valores da segurança e da liberdade. Porque quanto maior a liberdade menor a segurança. Mas o inverso também verdadeiro. Quanto maior a segurança menor a liberdade.
No entanto, na atual situação de pandemia mais do que na segurança eletrónica, vejo na precariedade o principal inimigo da liberdade e da democracia.
Texto publicado originalmente no Correio do Minho.
Moisés de Lemos Martins é professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, em Portugal. Dirige o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), que fundou em 2001. É Diretor da revista Comunicação e Sociedade e também da Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC).
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