Eurico Arruda, professor titular de virologia da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, é um dos poucos cientistas brasileiros a estudar esta família viral
O coronavírus pode permanecer no organismo de pessoas consideradas recuperadas da Covid-19 por um tempo ainda desconhecido. A afirmação é de um dos raros especialistas em coronavírus do Brasil, Eurico Arruda, professor titular de virologia da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. O cientista já estudava essa família de vírus muito antes de o Sars-Cov-2 emergir na China e espalhar doença e morte pelo mundo. Ele adverte que apenas ter anticorpos não significa que uma pessoa esteja imune à Covid-19. Arruda coordena o Laboratório de Patogênese Viral e diz que a carteira de vacinação, provavelmente com uma vacina com vírus inativado, será o passaporte de imunidade possível contra o Sars-CoV-2.
Muitos países e empresas planejam testar os funcionários para saber se têm anticorpos e estariam imunes ao novo coronavírus, mas a OMS alertou que não existe um “passaporte de imunidade”. Qual a sua opinião?
A ideia de passaporte de imunidade com base em testes de anticorpos não só é descabida por não ter base científica, quanto é perigosa. Os testes dizem apenas que uma pessoa tem anticorpos. Mas ter anticorpos não é o mesmo que possuir defesas e estar imune. A resposta imune é complexa, e envolve outros componentes além de anticorpos. O ‘passaporte’ colocará pessoas infectadas nas ruas para passar o vírus livremente.
Por quê?
O anticorpo é uma cicatriz sorológica, não é um atestado de imunidade. Ele é uma marca da exposição ao vírus presente no soro sanguíneo. A presença de anticorpos diz que uma pessoa foi exposta ao vírus e produziu uma resposta a isso. Mas isso não significa que ficou imune, pois a resposta pode não ser forte ou duradoura o suficiente, e tampouco que ela deixou de ser portadora do vírus. Claro, algumas pessoas com anticorpos de fato terão desenvolvido defesas, anticorpos capazes de bloquear a infecção, mas os testes sorológicos disponíveis em larga escala não são capazes de informar isso. O teste para detectar a presença de anticorpos neutralizantes, que não é um teste rápido, seria um indicador mais acurado de imunidade.
O que falta saber?
Muitas coisas. Não conhecemos a capacidade de persistência do Sars-CoV-2, mas sabemos que outros coronavírus podem provocar persistência.
O que é persistência?
É a capacidade de um vírus continuar “escondido” no organismo mesmo depois de a pessoa se recuperar de uma infecção. O vírus para de se replicar desenfreadamente e de causar doença, mas continua no corpo da pessoa. Se as defesas dela, por algum motivo, enfraquecem, ele pode voltar a se replicar e ser transmitido, e pode provocar sintomas.
Seria esse o caso de pacientes com Covid-19 que haviam sido considerados recuperados e voltaram a testas positivo na Coreia do Sul e na China?
Muito provavelmente. Uma reinfecção tão precocemente após a cura clínica é altamente improvável. O que pode acontecer é que o sistema imunológico debelou parcialmente o vírus, mas não o derrotou de vez. Por alguma fraqueza, ele voltou a causar sintomas ou a se replicar, ainda que a pessoa esteja assintomática. Uma hipótese é que isso aconteça porque o sistema imunológico esteja ainda aprendendo a atacar o vírus e se adaptando a um novo patógeno. Quase sempre o vírus será derrotado mais uma vez, mas não necessariamente eliminado.
Isso significa que a pessoa continuará contagiosa?
Algumas pessoas, provavelmente, sim.
O que sabemos de persistência em conoravírus?
Temos fortes evidências que os chamados coronavírus endêmicos, que causam até cerca de 15% das infecções respiratórias, fazem isso. Um estudo que realizamos com crianças saudáveis que tiveram as amígdalas extraídas (porque eram grandes e poderiam causar problemas) — e essa cirurgia corretiva só pode ser feita em indivíduos livres de sintomas de infecção respiratória aguda — mostrou que 13% de 190 estavam infectadas por coronavírus endêmicos (HKU1, OC43, NL63 e 229E). Elas não apresentavam qualquer sintoma. Mas os coronavírus podem se replicar e sair das tonsilas (adenoides e as amígdalas) .
E o que acontece?
A criança não manifesta sintomas da infecção viral, mas pode passar o vírus adiante. As crianças têm anticorpos para os coronavírus, portanto seriam ‘imunes’, mas no entanto podem ser ainda contagiosas. Logo, um teste de anticorpos lhes daria “um passaporte de imunidade” falso, não bloquearia a transmissão desses coronavírus. Isso é um perigo.
O novo coronavírus, o Sars-CoV-2, poderia fazer o mesmo?
Tenho quase certeza que sim. Em ciência trabalhamos com fatos, por isso, essa hipótese terá que ser provada. E só poderemos fazer isso quando pudermos obter biópsias de tonsilas de pessoas que tiveram Covid-19 e que se submeterão a alguma cirurgia para remover tonsilas após a pandemia. Isso por enquanto, por segurança, não é possível.
Isso já foi visto com outros vírus?
Sim. Publicamos este ano um estudo numa das revistas mais importantes da área, o Journal of Virology, mostrando que influenza H1N1 fez persistência em crianças no Brasil. Ele consegue se esconder dentro das principais células de defesa do organismo, os linfócitos, inclusive os do tipo CD8, células cuja duração pode chegar a décadas. Isso é como morar dentro do tanque de guerra do inimigo e usá-lo a seu favor. Essa variante de H1N1 que faz isso chegou a um ponto ideal do ponto de vista do vírus.
Por quê?
Porque ele consegue continuar a existir e a se multiplicar. Não o suficiente para causar doença na criança hospedeira, mas o necessário para que ela o possa transmitir para outras pessoas. Não é do interesse do vírus que o hospedeiro morra porque ele desaparecerá junto. O Sars-CoV-2 é letal porque está se adaptando a um novo hospedeiro, ou seja, nós.
O que isso significa?
Que ele continuará entre nós. Causará muita infecção e morte nos mais vulneráveis e depois provavelmente se adaptará a permanecer. Não irá embora. Precisamos fazer logo uma vacina.
Então um passaporte de imunidade agora não é possível?
Não. Estamos aprendendo lições muito duras. As pessoas estão brincando com o fogo. No Brasil, estamos muito mal. O governo e as empresas falam em retomada da economia justamente no momento mais crítico da epidemia. O resultado será um pandemônio. Se até aqui tivemos alguma redução de curvas de crescimento, foi graças ao distanciamento social, e reduzi-lo dará ao coronavírus um passe livre. O vírus vai bater na porta das casas e das empresas.
Mas nunca teremos um verdadeiro passaporte de imunidade? Claro que poderemos ter. O passaporte será uma carteira de vacinação. Teremos um passaporte quando desenvolvermos uma vacina, provavelmente feita com vírus inativado, semelhante a que é usada para influenza. Só uma vacina nessa linha será capaz de provocar uma resposta imunológica, não apenas potente o suficiente para impedir o desenvolvimento da doença, quanto duradoura.
E estamos caminhando para uma vacina assim?
Estou otimista nesse sentido. Fiquei muito feliz com os primeiros resultados de cientistas chineses que imunizaram macacos com uma vacina contra a Covid-19 feita com vírus inativados. Ela é importante porque essa é a estratégia que pode funcionar e porque usou macacos, o modelo experimental mais próximo do ser humano. O próximo passo será testar com voluntários.
Por que a vacina precisa ser com vírus inativado e não com pedaços de genes, uma vacina genética, por exemplo?
Há várias possibilidades de fazer uma vacina, inclusive de vírus atenuados, ou de partes do vírus, mas vacinas inativadas são mais rápidas de produzir, e provocam resposta de defesa poderosa. Ela contém várias proteínas do vírus e assim faz com que células do sistema imunológico produzam anticorpos e desenvolvam uma memória contra o coronavírus.
Mas essas vacinas são seguras?
Sim. Muito. Elas são feitas com vírus mortos. Os coronavírus são revestidos de uma camada de lipídios, isto é, gorduras. Para fazer a vacina, essa camada é dissolvida com detergentes — e, por favor, não adianta tomar detergente como sugeriu o presidente Donald Trump porque eles são tóxicos, acho que todos sabemos. O detergente rompe o vírus, ele é despedaçado e fixado com formalina. Ele deixa de ser um vírus, não é mais infectante. Mas as proteínas que precisamos para que nosso sistema de defesa aprenda e se arme estão lá.