Por Clarissa Dri
A história da América Latina independente pode ser compreendida pela história de suas tentativas de integração. Desde muito cedo, as lideranças que trabalharam pelo fim do colonialismo europeu colocaram-se a questão sobre como os novos Estados seriam reconhecidos e inseridos no sistema internacional. Uma opção bastante óbvia, entre outras, era buscar uma aliança com os vizinhos a fim de unir forças para um posicionamento internacional mais robusto, que evitasse principalmente novas medidas coloniais. Essa aliança foi compreendida por parte das elites locais como um risco de subordinação a outros países latino-americanos. Ademais, parcelas dessas elites preferiam outra opção de inserção internacional, guiada pela aproximação com o mundo desenvolvido, sobretudo Inglaterra, e, em seguida, Estados Unidos da América. Se acrescentarmos a variável chinesa, essa rápida descrição continua se aplicando aos dias atuais. Ainda hoje, as interpretações sobre os caminhos para o desenvolvimento dos países latino-americanos estão relacionadas com essas opções.
Dois problemas surgem a partir daí. O primeiro é nossa falta de memória histórica. Por vezes nossas inferências sobre integração regional, Mercosul ou Unasul por exemplo, desconsideram que essas iniciativas fazem parte de uma história de quase 200 anos. Os bicentenários das independências, que vem sendo comemorados na América Latina, marcam também o bicentenário do regionalismo. Não é possível compreender a dimensão do Mercosul quando ele é descontextualizado de suas origens e de seus processos formadores. O segundo é a transformação em verdade absoluta de discursos que são, em realidade, interpretações e possibilidades. Quando analistas ou a imprensa colocam que o Brasil precisa “livrar-se das amarras” do Mercosul para se desenvolver, o que o Brasil não pode estar “engessado” pelos vizinhos para participar de tratados internacionais de comércio, é preciso lembrar que essas são percepções, necessariamente parciais. O fato é que não há verdade incontestável ou imutável nas receitas para o desenvolvimento – se houvesse, a América Latina, com as tentativas que já foram implementadas, estaria hoje no rol das regiões desenvolvidas. Portanto, não devem existir dogmas nem tabus nesse debate.
Parcela dos atores políticos e midiáticos empreende esforços constantes para dizer que o Brasil tem tudo a ganhar com o afastamento da região e com mais “liberdade” de atuação na cena internacional. No entanto, eles frequentemente não esclarecem de fato o que se pode ganhar. Esse texto vai na direção contrária e procura discutir o que o Brasil pode perder com o enfraquecimento do processo de integração. Para isso, está embasado historicamente nas fases do regionalismo, sobretudo nas etapas recentes. A década de 1980 foi marcada na América Latina pela crise da dívida externa e pelo retorno dos regimes democráticos. Após empréstimos para financiar investimentos em industrialização e infraestrutura durante as anos 1970, diversos países latino-americanos viram sua dívida com instituições financeiras internacionais crescer exponencialmente, chegando em 1982 à metade do PIB da região e ultrapassando o valor de suas exportações anuais. Os governos decidiram então coordenar posições visando aumentar seu poder de barganha junto aos credores internacionais.
Reuniões periódicas entre chefes de Estado e ministros de economia foram organizadas entre 1984 e 1987. Elas estabeleceram importantes consensos como a corresponsabilidade de devedores e credores e o consequente caráter político, mais do que econômico, das negociações. Esse diálogo multilateral estruturado fortaleceu os Estados latino-americanos e garantiu prazos, juros e descontos mais flexíveis para o pagamento das dívidas. Nesse mesmo período, o declínio dos governos militares, especialmente no Cone Sul, trouxe outras necessidades de comunicação regional. Os novos governantes buscavam reconhecimento internacional para fortalecer seus mandatos internos, o que foi conquistado inicialmente por meio da legitimação dos novos regimes junto à vizinhança. O eixo Argentina-Brasil foi reforçado por meio de novas rotas comerciais e pelo planejamento da cooperação em diversos setores, entre eles o científico, tecnológico e nuclear. A integração regional mostrou-se como estimuladora e garantidora da democracia na medida em que aproximou lideranças e gerou confiança entre os países.
Nos anos 1990, a maioria dos Estados latino-americanos, governados por forças liberais, começou a adotar medidas de liberalização comercial intra-regional, seja com a criação do Mercosul e do Sistema de Integração Centro-americano, seja com a revitalização do Pacto Andino. O comércio entre países vizinhos cresceu significativamente, de modo que a região ganhou confiança para incrementar as trocas internacionais sob a égide da “globalização”. No caso do Brasil, 20% das exportações chegaram a ter como destino Argentina, Paraguai e Uruguai, que são mercados consumidores bem menores do que Estados Unidos ou Europa, por exemplo, sendo grande parte desses produtos industrializados. No final dos anos 1990, a Argentina foi fortemente atingida pelos efeitos da crise financeira asiática, principalmente devido à paridade constitucional entre o peso e o dólar. O governo de Fernando Henrique Cardoso entendeu que o desenvolvimento brasileiro dependia da recuperação argentina, e decidiu que a arena regional seria o melhor espaço para auxiliar a economia do país vizinho. Em 2001, o Mercosul aprovou normas visando o reforço do livre comércio, passando pela eliminação de barreiras não-tarifárias e pela reforma dos órgãos de solução de controvérsias. Nesse caso, as ações decisivas para conter a crise vieram dos vizinhos (que seriam os mais afetados), e não das instituições internacionais ou potências hegemônicas. Não é difícil constatar que a integração regional foi um instrumento central para os desafios comerciais dos anos 1990 da América Latina.
Nos anos 2000, as forças políticas que chegaram ao poder falavam em uma América Latina unificada, retomando a ideia de Pátria Grande que ultrapassaria a fragmentação da região. Esse não foi exatamente o legado desses governos na esfera regional, por diversos motivos: falta de complementaridade econômica entre os vizinhos, disputas comerciais derivadas, por vezes, de interesses provinciais e movimentos nacionalistas no âmbito dos partidos de esquerda que governavam. No entanto, com a Unasul e a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) foram criados novos canais de diálogo que facilitaram a comunicação, o compartilhamento de políticas públicas exitosas e a solução de crises políticas. O Mercosul foi ampliado com a adesão da Venezuela e viu nascer novas instituições políticas e sociais, como o Parlamento do Mercosul, a Unidade de Apoio à Participação Social, responsável pela organização das cúpulas sociais, o Instituto Social do Mercosul e o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos. Foi implementado o Acordo de Residência do Mercosul, com adesão de quase todos os países sul-americanos, que estabelece o livre trânsito de pessoas ao estilo da zona Schengen europeia. Nenhuma dessas iniciativas modificou o caráter intergovernamental da integração, sem cessão de soberanias nacionais. Mas elas criaram espaços deliberativos incluindo mais países, mais setores e mais atores do que em períodos anteriores, aumentando o conhecimento mútuo e fazendo dos vizinhos interlocutores primordiais para atuação no sistema internacional.
Em 2003, o Brasil liderou a criação do Grupo de Amigos da Venezuela, que auxiliou a Organização dos Estados Americanos a mediar a crise interna venezuelana após a tentativa de golpe de Estado de 2002. Em 2008, uma reunião de emergência da Unasul levou ao fim dos bloqueios de gasodutos na Bolívia por setores separatistas, após a decisão do governo de nacionalizar a produção e a morte de dezenas de apoiadores do presidente. É difícil imaginar que as atuais crises na Venezuela e na Bolívia teriam tomado tamanha amplitude se essas arenas de diálogo estivessem em pleno funcionamento. No caminho inverso, a Unasul, com uma década de construção institucional e investimentos dos países, foi esvaziada em 2018 em nome da criação de um Prosul que até agora não mostrou a que veio. Mediadores ou interventores externos são vistos como única saída para a estabilidade, como se a América Latina precisasse de tutela internacional. Seria possível argumentar que cada governo está preocupado com questões internas, se as consequências dessas crises não atingissem diretamente o âmago de cada um dos países vizinhos. A recepção de milhares de migrantes venezuelanos é apenas um dos efeitos desses graves conflitos potencializados pela omissão dos Estados latino-americanos.
Ao contrário do que algumas ideologias poderiam fazer crer, as crises atuais não são exclusivas de Estados que elegeram partidos progressistas para o poder executivo. Chile, Peru e Colômbia, todos com governos liberais e com histórico de proximidade política, econômica e comercial com Estados Unidos, passaram por fortes protestos sociais no início de 2020. No Chile, o presidente foi obrigado a iniciar um processo constituinte almejando modificar a Carta Magna herdada da ditadura militar. No centro do debate deve estar o questionamento das atribuições do setor privado sobre saúde, educação e previdência, o que mostra que o “modelo chileno” não era tão milagroso quanto seus adeptos proclamavam.
No caso brasileiro, o enfraquecimento da integração regional tem consequências também para a política externa como um todo. Nos anos 2000, o Brasil adotou uma clara estratégia de incrementar sua visibilidade internacional por meio da liderança regional. Por vezes competindo por reconhecimento com Argentina, Venezuela ou México, por vezes tentando representar a região em fóruns internacionais, essa liderança não foi sempre efetiva ou inconteste, mas sua busca gerou efeitos concretos para além da América Latina. O Brasil colheu frutos simbólicos e materiais da nova imagem internacional durante duas décadas, até que a destituição do governo em 2016 e a eleição de um partido de extrema-direita em 2018 produzissem a marginalização do país na cena internacional, reduzindo à insignificância e ao ridículo um Estado de dimensões continentais com uma longa e ora respeitada tradição diplomática.
Não é pouco o que se perde com o afastamento da região: alternativas comerciais, mercados consumidores para produção industrial, proteção às liberdades democráticas, poder de barganha e voz no sistema internacional, possibilidades de mediação e solução de conflitos. O fortalecimento da integração regional é um caminho possível e uma opção aberta para a autonomia e o desenvolvimento da América Latina. A quem interessa negar esse debate?
Nesse momento de pandemia do coronavírus, a falta de integração e cooperação regional passa a ser ainda mais sentida. Intercâmbio de dados e informações, compartilhamento de soluções encontradas localmente, estratégias para evitar o fechamento de fronteiras muito ativas das quais a população depende diretamente, medidas de vigilância sanitária coletiva, capacitação de recursos humanos com técnicas testadas em um país vizinho, negociação conjunta de empréstimos de instituições financeiras internacionais e compra conjunta de medicamentos buscando melhores preços e condições. Esse tipo de ação estrutural pode acelerar o combate à pandemia na América Latina e auxiliar na prevenção das futuras epidemias. Mais uma vez, perde-se muito ao se ignorar o potencial da integração regional.
Clarissa Dri é professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC e pesquisadora do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH-UFSC)
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião da diretoria e/ou dos filiados da Apufsc.