Por Padre Vilson Groh
Vivo há quarenta anos na periferia de Florianópolis, onde sou aprendiz, ao mesmo tempo em que tento cumprir minhas outras missões. Por conta do que vejo, ouço e sinto nesses últimos dias, gostaria de fazer uma reflexão um pouco mais profunda a respeito do que estamos vivendo. Mas também, num segundo momento dessa fala, convocar a todos para a ação que a urgência dos fatos pede.
Peço que olhemos, cada um de nós, pra dentro de si. É preciso que a gente reconheça nossos medos e angústias e entenda que esses sentimentos, agora, nos unem. Mesmo com todas as diferenças que as culturas e a profunda desigualdade econômica desse mundo nos impõem, poucas vezes nos percebemos tão conectados. Então, esse é um momento complexo e desafiador, mas também é um momento de grande revelação. Ali, invisível para muitos de nós, embaixo de uma palha finíssima que esse vento mais forte levou, estava intacta a profunda interdependência que vivemos enquanto seres humanos. As ideias de individualismo e autossuficiência, embutidas na cultura da desigualdade, não resistiram um minuto diante da envergadura dos dois seguintes desafios que estamos encarando simultaneamente.
Pandemia
O primeiro desafio é uma ameaça imediata à vida. Sem importar se há grupos com mais ou menos risco de a perderem. Estamos vendo uma dura resposta do planeta, da mãe terra, para a forma impensada e nada racional com que temos a ocupado e explorado seus recursos. Vírus antes restritos às outras espécies e aos espaços naturais preservados, são claramente uma reação da natureza a essa profanação. Sim, profanação é a palavra mais justa. Mas não há nenhuma justiça divina ou natural em punir os mais fracos pelos erros dos mais fortes. Essa lição, aprenderemos lutando pela vida de todos.
Economia
O segundo desafio, não menos complexo, é uma consequência inevitável do primeiro: uma ameaça à economia como um todo, portanto, uma ameaça à uma das engrenagens de sustentação da vida cotidiana. Sistema que, ao precisar ser desligado em parte como agora, entra num rápido colapso, revelando toda sua fragilidade. Porque nele percebemos que não há plano B para a maioria de nós. No Brasil, estamos ouvindo, chocados, as falas que naturalizam as mortes de milhares ou milhões por causa de uma doença, e também as que naturalizam a ausência de renda para milhões, talvez dezenas de milhões de pessoas, por tempo indeterminado. São interlocutores que por nenhum lado representam as reais vítimas desse desligamento temporário. No lado do emprego formal, sabemos que são as micro e pequenas empresas as maiores empregadoras do país. E no lado da informalidade, que essa já atinge quase metade dos brasileiros. Uma metade que tem forte intersecção com a outra metade: a dos que vivem com até meio salário mínimo. Essa é a nossa gente, que ganha para o mês, para a semana, para o dia. Em Santa Catarina, em comparação com a média brasileira, onde eu disse metade, leia-se um quarto da população, o que não torna as consequências desse desligamento temporário menos alarmantes. Sim, sabemos que, infelizmente, o isolamento social agrava esse quadro e temos testemunhado esse agravamento todos os dias. Mas não podemos nos deixar levar por confusões retóricas.
Nós, que vivemos essa realidade das ruas e comunidades, sabemos desde sempre que economia e vida não se opõem. Não há vida humana sem economia. Em qualquer sistema econômico, a economia também é a roda que repõe o que está sendo consumido. Mesmo quando essa reposição é feita com terríveis desigualdades e privilégios, como no nosso país.
Um único caminho
Neste exato momento existem dados, teorias, interesses e urgências, dos mais aos menos legítimos, que usam essa falsa dicotomia entre vida e economia para disputar uma narrativa que defina onde estaria o maior problema. Morrer doente ou morrer de fome? Quantos em cada lado da “guerra”? Um fatalismo que tenta nos convencer de que precisamos fazer uma opção trágica, como entregar um de dois filhos para a morte. E nós estamos cansados de saber de onde, de que parte da sociedade, virão a maioria desses filhos, pais e avós, entregues para uma reeditada espada espartana.
Pois bem, não entregaremos nenhum deles.
Escolhemos a vida e a vida. A vida é sagrada, não se negocia, não se relativiza. Pela vida se luta. Em todos os campos e momentos.
E assim convocamos todos, para que se unam em seus medos, suas coragens, seu sentido comunitário, seu amor. Porque nunca foi tão clara a profundidade e a beleza da nossa conexão. A luta pela sobrevivência e pela superação desses desafios como sociedade, como civilização, é o sentido maior que o existir pode nos dar agora. Viver o agora, presentes, dentro das nossas cidades, das nossas comunidades. E dar a consciência sobre o que é ser humano, a única forma possível, que é a forma da ação.
Pandemia e isolamento social
Para além dos debates intermináveis sobre aspectos que podem atenuar ou agravar no Brasil a tragédia inequívoca que se abate sobre os irmãos de outros países, é também incontestável que o isolamento social é, hoje, a grande arma das cidades para evitar o colapso dos sistemas de saúde e para proteger sua população mais frágil. A grande maioria dos países citados como exemplo dos que não optaram por ele, já recuaram diante dos fatos. Enquanto outros, onde a Organização Mundial de Saúde avalia já estarem na fase de grande imunização e com sistemas de saúde longe de colapso, já planejam retornos graduais às atividades. O Brasil está ainda, claramente, em outro momento. E Florianópolis, por exemplo, apesar de um número ainda pequeno de mortes registradas, já tem hoje um dos maiores coeficientes de contágio por habitante dentro das capitas brasileiras, segundo o Ministério da Saúde. Nós defendemos a manutenção e a ampliação do isolamento social, se assim seguirem indicando a OMS, as autoridades médicas e as experiências melhores sucedidas no mundo, principalmente neste momento em que a chamada curva de contágio acelera na nossa cidade. Esta é a nossa posição. Nas comunidades periféricas, temos visto diariamente um esforço para que se cumpra a tarefa do isolamento. A maioria está reclusa, atendendo aos decretos dos poderes públicos. As dificuldades apontadas por muitos para o isolamento dito vertical – apenas para os grupos de risco –, como a falta de cômodos, banheiros e de tudo que precisaria ser duplicado são, nessas comunidades, obstáculos mais que reais. São imperativos. Aqui, a livre circulação e as atividades dos indivíduos fora do chamado grupo de risco tornarão impossível o não contágio familiar da imensa população de idosos, debilitados, acamados, portadores de comorbidades e toda uma série de fatores ainda em estudo que podem agravar a intensidade da Covid-19.
Pandemia, controle e comunicação
Sobre os esforços pelo aumento do número de testes para detectar a presença do vírus, precisamos sublinhar a necessidade de que cheguem antes ou, ao menos, não tardiamente, nas comunidades periféricas. A maior fragilidade nas condições para o isolamento presente nesse contexto social, obriga os gestores da saúde a tornarem isso uma prioridade.
Tão urgente quanto, é criarmos alternativas para a informação de qualidade sobre a pandemia nessas comunidades. Principalmente de informação oficial, das autoridades de saúde. Com objetividade, clareza, linguagem adequada e o uso da tecnologia. Com proposições que considerem as particularidades e limitações desses locais, para uma efetiva proteção das pessoas. Uma cartilha didática, única, um porto seguro que se oponha a fragmentação de informação que vemos. Todos estão conectados às redes durante essa reclusão, mas a maioria segue perdida entre os medos, o excesso de termos e especulações científicas e as disputas narrativas das quais são as principais vítimas. Além disso, chama atenção a contradição entre decretos, pronunciamentos, propagandas e aconselhamentos, justamente por parte dos gestores públicos que carregam a responsabilidade do que chamamos comunicação social.
Sob uma unidade estratégica, a mídia em geral e o nosso setor privado da tecnologia, que é referência no país, podem e devem contribuir com algumas dessas soluções.
Pandemia e morte
Florianópolis, tão valorizada por sua qualidade de vida, tem uma sequela extremamente perversa da sua histórica falta de planejamento urbano: não há vaga em cemitérios. Cidadãos de menor ou nenhum poder aquisitivo têm sido sepultados em cemitérios menores no interior da ilha ou mesmo em outras cidades. Frequentemente, nós padres, precisamos implorar por uma vaga para alguém que está sendo velado. Se vierem a morrer 100 pessoas em um curto espaço de tempo, simplesmente não há onde sepultá-las e as cenas de outros países, que hoje nos chocam, poderão ser vistas aqui. Qual o plano do poder público ou dos que pretendem desafiar a pandemia para essa questão?
As três economias
A paralisação econômica e a diminuição ou desaparecimento súbitos da renda, que agravam enormemente uma situação que já era difícil, é o que mais impacta nosso trabalho nas comunidades nesse momento.
Para além do desespero – que se justifica pela ausência ou diminuição sensível da renda familiar – e da dificuldade natural que temos em encarar uma nova realidade que nos põe medo, está claro que não haverá uma volta normalizadora das atividades econômicas antes que a fase mais aguda da pandemia nos atinja e depois recue. Para muitos, principalmente os empreendedores com menor estrutura, esse desejo ou precipitação, que ignora os fatos científicos, pode significar o aprofundamento dos seus problemas, além do evidente risco à saúde de todos. E quando essa volta gradual ocorrer, em qualquer tempo, os problemas seguirão por resolver, dada a forma com que já se instalaram. Sendo assim, o que faz um país, um estado, uma sociedade ou uma cidade, em momento de profunda retração econômica? Os exemplos perversos conhecemos. Mas falemos dos bons, que temos de sobra na história do mundo, inclusive em regiões desse nosso estado diversas vezes assolado por cataclismos: substituímos temporariamente parte dessa economia privada pelo forte incremento de duas outras: a economia de estado e a economia solidária. Que também dependem da economia privada mas, na revolução de suas prioridades e engajamentos, podem nos dar lastro pra cruzarmos a tormenta. E precisamos fazer isso com toda a força que vive em nós, desde os que ocupam os mais altos cargos e posições, até o mais simples cidadão. São desses momentos de rara conexão que estamos falando. Já os conhecemos. Sejamos assim grandes, meus amigos. Infelizmente, é fato que teremos muitas e muitas perdas econômicas que se reverterão em um comprometimento do sustento e da qualidade da vida de muitos, por um tempo ainda desconhecido. Mas o ser humano já avançou em capacidades e conhecimentos mais que suficientes para não cogitarmos as escolhas medievais.
Assistimos, estarrecidos, às quedas de braço em Brasília sobre um tímido socorro financeiro para quem está precisando muito. No fim, um auxílio único de seiscentos reais, por três meses. Para uma fração apenas dos que já estão em emergência. Ao mesmo tempo em que os bancos que mais lucram no mundo recebem do governo um aporte trilionário sem exigência de contrapartidas. Estão, pelo que se sabe, subindo taxas para novos empréstimos. Governos estaduais e municipais não podem esperar. Em que pesem as iniciativas e parcerias já em curso, é preciso agir mais efetivamente. Aqui, estamos fazendo o de sempre: trabalhando diuturnamente para atenuar sofrimentos. Em 20 dias, entregamos 2 mil cestas básicas e kits de higiene pessoal. E servimos em parceria com a Prefeitura Municipal de Florianópolis aproximadamente 10,5 mil refeições e 12 mil lanches. Mas para sermos efetivos numa realidade que pode rapidamente tornar o doador solidário de hoje o necessitado de amanhã, precisamos de um grande movimento. Um engajamento crescente do poder público e de toda a sociedade, com ferramentas eficientes e potentes de comunicação, criatividade, tecnologia, logística, voluntários, desde os para as tarefas mais simples até os capazes de participar dessa gestão, organização e análise de prioridades. Precisamos, sobretudo, transmitir esse sentimento, essa responsabilidade que temos como coletividade, como civilização. As hashtags e movimentos nas redes sociais têm que passar a incluir esse chamado à solidariedade. Nós, da sociedade civil, podemos e queremos ser parte importante e atuante desse movimento, mas não podemos dar conta de todas as urgências, que crescerão em escala tão exponencial quanto a do contágio pelo vírus nas próximas semanas.
Um presente para o futuro
Muito mais do que a exaltação ou execração instantâneas dos que vestem ou tiram a camiseta do isolamento social, que apoiamos fortemente neste momento, é preciso que as humanidades venham à tona de forma madura. Que nos escutemos. Que nos conectemos, de fato, como instituições, mas sobretudo como pessoas, para encontrarmos os caminhos dentro dessa postura inegociável de defesa da vida. Essa é a decisão que lá na frente será a nossa luz, nossa consciência, nosso espírito, quando tivermos superado tudo isso. Muito para além das previsões catastróficas que nos chegam, o futuro faremos nós. E ele será o puro reflexo desse espírito.
Obrigado e fiquem com Deus.
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião da diretoria e/ou dos filiados da Apufsc.