Gravidade de novas ondas da doença dependerá de medidas de contenção tomadas agora, dizem especialistas
À medida que China, Coreia do Sul e Cingapura veem casos novos de Covid-19 emergirem, em sua quase totalidade importados, cresce o temor de uma segunda onda da pandemia. Cientistas estão convencidos que o vírus continuará a ser uma ameaça global por muito mais tempo, num período que pode chegar a dois anos, segundo algumas previsões. Mas a gravidade de novas ondas em cada país dependerá das medidas de contenção que eles tomarem agora, alertam especialistas.
O Brasil, que está só no início da subida da primeira onda, ainda não consegue fazer testagem em massa, que tem tido êxito global. E as medidas de isolamento social para aqueles que podem ficar em casa, defendidas pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e governadores, enfrentam a resistência de parte da população e do presidente Jair Bolsonaro. Sem isolamento severo e testes, mostram todos os países que baixaram a curva de ascensão da epidemia, é impossível conter o coronavírus.
Uma projeção do grupo “Covid-19 Brasil”, que reúne universidades brasileiras e acertou todas as análises até agora, diz que o Brasil tem hoje, na verdade, 82 mil pessoas infectadas e não 12.056 como indica o governo. As novas projeções levam em conta a estrutura etária da população com base nos dados do IBGE.
“O momento não é de discutir se uma segunda onda virá porque isso é certo. A questão é como virá. Muito provavelmente o coronavírus causará ondas nos próximos dois anos. A questão será nossa capacidade de testar o maior número de pessoas, saber quantos são os infectados, isolar os casos”, alerta Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), que trabalha com vários pesquisadores de universidades no Brasil nas projeções do grupo.
Segundo ele, a curva do Brasil está mais íngreme que a dos Estados Unidos e estamos ainda na primeira metade da escalada, cujo pico poderá ser alcançado somente em maio, num cenário otimista e, em novembro, num pessimista.
Modelo asiático não é factível no Brasil
Se China e Cingapura, com novas medidas de isolamento e alto controle social, além de intensa testagem, são vistas como exemplo e observadas com atenção neste momento em que tentam segurar uma nova onda, Alves e outros pesquisadores, como a professora de virologia da UFRJ Clarissa Damaso, pensam que o modelo asiático pode funcionar lá, mas não é factível no Brasil.
“O nível de controle social, com total comando do governo sobre a vida dos cidadãos, a tecnologia e a capacidade de prover hospitais, profissionais e toda uma infraestrutura de contenção desses países está muito acima do que é possível fazer no Brasil. Temos que focar na testagem em massa e no isolamento social, as medidas que nos são possíveis e funcionam”, diz Damaso, assessora do Comitê da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a pesquisa com o vírus da varíola, doença que foi um dos piores flagelos da História da Humanidade.
A Alemanha, que tem uma taxa de letalidade abaixo de 1% e é um dos países que mais testaram no mundo, é um exemplo melhor a ser observado, sugerem. A Alemanha não apenas testa muito (mais de 10% da população), mas começou a testar cedo, isso significa que seu número de infectados é muito mais próximo do real, pois inclui pessoas com sintomas brandos e mesmo algumas assintomáticas. Somado a isso, a Alemanha isolou cedo todos os infectados e seguiu o distanciamento social com intensa disciplina.
A Alemanha tem ainda um sistema de saúde pública bem estruturado e equipado. Prova do sucesso alemão é que o país tem transportado e tratado pacientes graves de Itália, França e, em breve, da Espanha.
“No Brasil estamos indo mal em testes. Para saber o tamanho da onda atual e ainda projetar uma futura precisamos de testes, isso vai nos dizer quantos infectados temos. A China está com medo agora de uma segunda onda porque a China testou muito pouco na primeira. Os chineses não sabem quantos assintomáticos têm, quantos são os casos leves. Por isso, correm desesperados com medidas de controle e testagem extremas”, explica Clarissa Damaso.
O Brasil está entre os países que menos testam no mundo – 258 por milhão contra 10.962 por milhão da Alemanha, por exemplo.
Nesse ritmo, jamais teremos um passaporte de imunidade, como sugeriu o ministro da Economia, Paulo Guedes.
“O tamanho da segunda onda em cada país depende do comportamento da primeira, de quantas pessoas permanecem vulneráveis, quantas foram infectadas e podem ter adquirido, em tese, imunidade”, observa a pesquisadora.
Ela diz que algumas empresas têm planejado testar seus funcionários para saber quantos foram infectados, se recuperaram e poderiam, em teoria, voltar a trabalhar. O problema é que a maioria dos novos testes ainda está em validação, e não há garantia sobre os resultados devido ao percentual elevado de falsos negativos e positivos.
Já os testes “padrão ouro”, moleculares, são escassos devido à falta de insumos e, no Brasil, só usados em profissionais de saúde, doentes graves e mortos, quando muito.
“Este não é um momento para relaxar nem pensar em segunda onda. É um momento para aumentar a severidade do isolamento social e focar em baixar a primeira onda, que ainda nem começamos a subir. É dessa escalada que teremos uma visão de novas ondas da pandemia”, diz Clarissa.
Há muita coisa que ainda não se sabe sobre o coronavírus. Uma delas é se uma pessoa infectada e recuperada se torna imune. Esse é o princípio do “passaporte de imunidade”. Os infectados recuperados teriam anticorpos que os protegeriam. Acontece com os vírus do sarampo, por exemplo, mas não com todos os vírus. Tampouco se sabe quanto tempo duraria e o quão intensa seria essa proteção adquirida.
Na China tem surgido casos de “reinfectados”. A possibilidade de reinfecção é considerada baixa pela maioria dos cientistas. Mais provável seriam falhas nos testes ou ainda que o vírus possa permanecer mais tempo escondido, ou ainda que a reinfecção seja, na verdade, apenas a presença de material genético, mas não do próprio coronavírus, e não cause doença ou seja transmissível.
“Para impedir novas ondas de Covid-19, temos que ter respostas para todas essas coisas, essenciais para saber o quanto vulneráveis realmente somos”, afirma Jerson Lima Silva, presidente da Faperj e professor titular do Departamento de Bioquímica Médica da UFRJ e um especialista no estudo da estrutura de vírus, que também pesquisa o coronavírus.
Há quem aposte as fichas nos céus. O coronavírus, também em teoria, gostaria mais do frio do inverno do que do calor do verão. Mas até agora não existe nenhum estudo conclusivo, apenas observações da suscetibilidade do vírus a variações de temperatura testadas em laboratório. E, para o Brasil, se o coronavírus prefere mesmo o frio, se trata de uma má notícia.
“Caminhamos para o inverno. Existe a tese de que o vírus não gosta de temperaturas acima de 20oC. Mas talvez ele seja mais transmissível no inverno, como são outros vírus respiratórios, porque as pessoas ficam mais juntas, quando as temperaturas são mais baixas. O acompanhamento nos diferentes estados do Brasil será crucial para sabermos se o inverno fará diferença na progressão da Covid”, diz Lima Silva.