Brasil tem pouco mais de 60 mil respiradores em hospitais públicos e privados e apenas quatro fabricantes nacionais, com produção mensal de cerca 2 mil aparelhos
Tiago Winter, empresário de 37 anos, é dono de uma ferramentaria que leva seu sobrenome, em Joinville, Santa Catarina. Fabrica moldes de plástico para montadoras de carro. Fabricava, até a chegada da quarentena contra o coronavírus. Agora ele adaptou a linha de produção para manufaturar algo mais simples: um pequeno tubo verde do tamanho de um polegar, no formato da letra T. A peça é comprada em lojas de construção civil, em estado bruto, e transformada de modo que possa se encaixar em um respirador pulmonar – máquina usada para tratar pacientes que não conseguem mais respirar por conta própria e que se tornou crucial para tratar os pacientes graves da Covid-19. Equipado com um tubo desses, um mesmo equipamento pode atender até quatro pacientes de uma só vez.
“O ideal é que cada respirador atenda a uma pessoa só, mas estamos trabalhando com o pior cenário. É tática de guerra”, afirmou Winter, empolgado com o projeto. O empresário tem coordenado as ações com outros ferramenteiros de vários estados, tudo por meio de grupos de WhatsApp. Ficou responsável pelos conectores de plástico e planeja produzir mil peças até a semana que vem, a serem distribuídas em Santa Catarina. O material já foi testado e aprovado pela empresa de engenharia clínica que administra as máquinas do Hospital Municipal São José, principal centro médico de Joinville. Não há consenso entre os médicos sobre a eficácia desse adaptador. Mas, na falta de uma alternativa, ele vem sendo usado em hospitais que sofrem com superlotação na Itália e nos Estados Unidos, países que, juntos, têm quase 260 mil casos de Covid-19. “Uma moto só pode carregar duas pessoas, em tese. Mas se você está fugindo de um furacão, vai botar até cinco pessoas na garupa”, define Winter.
Enquanto o empresário catarinense fabrica os adaptadores de plástico, outros de seus colegas produzem protetores faciais para profissionais de saúde – a Associação Brasileira da Indústria de Ferramentais (Abinfer) estabeleceu uma meta de entregar ao Ministério da Saúde 500 mil faceshields, como são chamadas as máscaras, até o dia 8 de abril. A produção está em curso. Os ferramenteiros são só uma fração das dezenas de grupos de WhatsApp formados por empresários, pesquisadores, voluntários e representantes do governo que vêm tentando bolar formas de preparar o sistema público de saúde para a fase mais crítica da pandemia. Os respiradores são o principal gargalo.
Os grupos de WhatsApp sobre o assunto começaram a se multiplicar no último dia 20, uma sexta-feira, quando empresários da indústria automotiva receberam uma solicitação do Ministério da Economia para que ajudassem a aumentar a produção desse tipo de aparelho no Brasil. A iniciativa partiu de coordenadores do extinto Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, hoje alocados na Economia. “O governo escolheu algumas pessoas para orquestrar todo o parque industrial que tivesse condições de ajudar nesse momento”, explicou Erwin Franieck, executivo da Bosch, multinacional alemã especializada em engenharia e ferramentas elétricas. Franieck é um dos principais responsáveis por coordenar os vários projetos que têm despontado no aplicativo de mensagens.
As conversas envolvem representantes de grandes montadoras – como Mercedes, Ford e General Motors, que paralisaram suas linhas de produção nas últimas semanas – e pesquisadores de várias universidades – como a UFRJ e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP. O grupo já fez ao menos três reuniões virtuais, com participação de membros do governo, para definir quais devem ser as prioridades neste momento.
Há vários projetos simultâneos em curso, alguns mais viáveis do que outros. Engenheiros da UFRJ estão desenvolvendo um protótipo de respirador que poderia ser reproduzido de forma barata e rápida, mas que ainda depende de conseguir financiamento. Já um grupo apoiado pela Unifesp tem reunido pessoas e empresas com acesso a impressoras 3D para tentar fabricar máscaras de proteção em larga escala.
O entendimento do governo e dos principais empresários envolvidos nas conversas, no entanto, é de que o principal objetivo a ser atingido neste momento é aumentar a produção de respiradores no Brasil, auxiliando as fabricantes que já existem e têm autorização para operar. As inovações, ainda que sejam funcionais no longo prazo, provavelmente não ficariam prontas a tempo de ajudar durante o pico de atendimentos do SUS, previsto para abril e maio. “Esses projetos de inovação são bacanas, mas também são complicados. É preciso especificar o projeto, fazer o design, certificar todas as peças, e isso demora”, explica um engenheiro que participa dos grupos de WhatsApp.
A meta estabelecida pelo governo federal é fabricar 15 mil aparelhos até o final de abril. O Ministério da Saúde publicou, no dia 26, um chamamento convocando empresas interessadas em fornecer os equipamentos em regime de contratação direta – ou seja, sem licitação. Empresários ouvidos pela piauí afirmaram que, além disso, haverá um novo chamamento emergencial para a compra de outros 15 mil aparelhos portáteis, que possam ser transportados de acordo com a necessidade do sistema de saúde. É um aumento expressivo para uma indústria que até então nunca teve grande demanda. O Brasil tem pouco mais de 60 mil respiradores, levando em conta tanto o SUS quanto os hospitais privados. O país tem apenas quatro fabricantes nacionais, com produção mensal de cerca de mil a dois mil aparelhos.
A importação de respiradores não é uma opção neste momento, ao menos não em larga escala. Há cerca de duas semanas, a União Europeia proibiu a exportação de equipamentos médicos, para garantir seu estoque. Índia e Turquia proibiram a exportação de respiradores. O Ministério da Saúde brasileiro fez o mesmo, e determinou que todos os aparelhos produzidos no país pelos próximos seis meses serão retidos pelo governo.
O presidente americano, Donald Trump, usou o Twitter na última sexta-feira (27) para ordenar que a General Motors e a Ford produzam respiradores para atender aos doentes de Covid-19 – “AGORA!!!”, e “RÁPIDO!!!”, escreveu, em caixa alta. A pressa é devida. Assim como acontece há semanas na Itália, o aparelho passou a ser um dos pontos mais críticos da pandemia nos Estados Unidos. O jornal The New York Times noticiou esta semana que um hospital nova-iorquino já adotou o compartilhamento de respiradores entre duas pessoas.
O cenário pode se repetir no Brasil, caso o número de contaminados continue crescendo em ritmo acelerado. Um estudo realizado em fevereiro com mais de cinquenta pessoas contaminadas em Wuhan, primeiro epicentro da pandemia, na China, constatou que, dos pacientes em estado grave, 71% precisaram ser tratados com ventilação mecânica. A disponibilidade dos respiradores, portanto, tem impacto direto sobre a mortalidade do vírus.
No Brasil, não houve ordem para que empresas de outros setores fabricassem respiradores. A General Motors, por aqui, tem se empenhado em consertar aparelhos quebrados ou desatualizados. O projeto é tocado em parceria com o Senai, que está fazendo um mapeamento da quantidade de respiradores fora de uso no país. A estimativa é de que há quase 4 mil equipamentos defeituosos no Brasil. Um dos envolvidos nessa iniciativa, o engenheiro clínico Samir Fernandes, diretor da SLS Hospitalar – empresa que atua nos estados do Sul, fazendo a manutenção de respiradores e outros equipamentos hospitalares –, calcula que cerca de 70% dos aparelhos defeituosos podem ser consertados.
Por ser de menor escala, no entanto, o projeto de manutenção é apenas complementar. “Nosso intuito é aumentar a produção de respiradores que já existe. Precisamos disso para daqui a um mês”, explicou João Alfredo Delgado, diretor de tecnologia da Abimaq – a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, que reúne 7 mil empresas. Dessas, mais de cem disponibilizaram suas fábricas para ajudar no processo de montagem dos aparelhos, afirma a entidade. Mas, por enquanto, continuam paradas.
O objetivo principal do governo brasileiro tem sido colocar as fabricantes em contato com empresas que possam fornecer componentes e matéria-prima para os respiradores. Até agora, no entanto, quase nada saiu do papel. Todo dia, uma das coordenadoras do Ministério da Economia, Margarete Gandini, compartilha uma mensagem nos grupos de WhatsApp atualizando o status do projeto. As quatro fabricantes brasileiras de respiradores, segundo ela, seguem “realizando o mapeamento de componentes críticos” – em outras palavras, mapeando os pontos nos quais precisam de ajuda para poder aumentar sua produção de equipamentos.
Há empecilhos técnicos – algumas companhias, por exemplo, precisam ser licenciadas para produzir componentes da indústria hospitalar, como válvulas pneumáticas e placas eletrônicas. “Nós não fabricamos itens hospitalares, mas nossas linhas de produção estão à disposição para montar e testar os produtos”, afirmou João Alfredo, da Abimaq. “Assim que essa questão dos componentes for resolvida, a produção vai ser rápida.”
Nesta segunda-feira (30) foi anunciada a primeira parceria para a fabricação de respiradores. A WEG, multinacional brasileira que produz motores e peças elétricas, vai usar suas instalações em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, para fabricar 500 respiradores em parceria com a Leistung, uma das fabricantes nacionais, sediada na mesma cidade. No momento, a WEG ainda está tentando comprar os componentes necessários para montar os respiradores. A previsão é de que os aparelhos comecem a ser entregues na segunda quinzena de maio.
Cerca de duzentas empresas estão envolvidas ativamente nas conversas, segundo Erwin Franieck, da Bosch. Conforme as notícias surgiam na imprensa, mais e mais empresários se juntavam às conversas de WhatsApp, oferecendo conhecimentos técnicos. Novas mensagens aparecem a cada minuto no aplicativo, e se perdem em meio às outras. Aos poucos, os grupos se ramificam: há conversas que tratam exclusivamente dos “componentes críticos” de respiradores, outras que tratam de soluções inovadoras e experimentais, e outras criadas só para organizar um repositório de projetos de engenharia e de modelos de impressão 3D.
Há desde empregados de gigantes como a Embraer e Microsoft até pequenas empresas de tecnologia, professores de engenharia e voluntários isolados. Até mesmo um colecionador de carros antigos ofereceu ajuda com peças industriais, em um dos grupos de conversa. “Tem muita gente envolvida, muitas ações, e aí são ideias demais, não fico acompanhando tudo. Eu coloquei nossa indústria à disposição. Agora estamos esperando o governo federal nos acionar para dizer do que precisa”, disse o presidente da Abinfer, Christian Dihlmann.
Frente à urgência por novos respiradores, o ritmo das conversas e ações precisa se apressar. Diante da complexidade dessa operação industrial, os únicos projetos que decolaram até aqui foram os de pequenos e médios empresários independentes, como Tiago Winter, de Joinville. Todas as peças que ele está fabricando serão doadas. “Minha empresa está só esperando o sinal verde do governo e dos hospitais para fazer fabricação em massa.”
É o mesmo que tem feito seu colega de profissão, Alexandre Mori, um empresário de 46 anos, diretor comercial de uma ferramentaria que também atende o setor automotivo, em Vinhedo, interior de São Paulo. Em vez de fabricar conectores para aparelhos de respiração, Mori tem se empenhado em fazer o plástico usado em máscaras de proteção. “Estamos fazendo tudo por WhatsApp, dividindo as tarefas. Já tenho oito ou dez grupos pra coordenar.”
O empresário contou que começou a se engajar nesse esforço industrial no último final de semana, às vésperas de a quarentena começar a valer para todo o estado de São Paulo. “Estava um clima bem pesado. Eu fiquei conversando com alguns colegas, cada um na sua casa, e a gente não sabia o que iria fazer na semana seguinte, se iria mandar todo os funcionários para casa. Mas aí o papo começou: vocês viram essa história dos respiradores? Será que dá para ajudar? E as máscaras de proteção? A gente começou a correr atrás de informação, e fomos entendendo o que dava ou não para fazer. E aí tudo isso começou a ganhar corpo.”