Editorial do Estadão, publicado a pedido do presidente da Apufsc, Bebeto Marques
Uma semana depois de a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) ter publicado portaria estabelecendo novos critérios para distribuição de bolsas e reduzindo financiamento de pesquisas, o que levou 60 sociedades científicas a acusar o governo Bolsonaro de desmontar o sistema brasileiro de pós-graduação, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) excluiu as ciências humanas da lista de prioridades do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As ciências humanas englobam, entre outras, economia, educação, direito, sociologia e letras.
Esses não são fatos isolados. Em maio de 2019, ao falar na Câmara dos Deputados, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, já havia ameaçado cortar o orçamento dos cursos de ciências sociais aplicadas e humanidades, alegando que suas pesquisas e publicações, uma vez concluídas, “são engavetadas por não ter impacto científico”. Anunciou, ainda, que o Ministério da Educação (MEC) transferiria recursos para outras áreas, com base no slogan “quem produz recebe, quem não produz não recebe”. Na mesma época, o MCTIC anunciou que a política do governo Bolsonaro para o desenvolvimento da área de tecnologia foi concebida com base na premissa de que “o fomento à ciência tem de trazer retorno imediato”.
À época, as duas premissas deixaram cientistas e acadêmicos perplexos, uma vez que, como já se tornou corriqueiro na formulação de programas do governo Bolsonaro, ambas careciam de fundamento empírico e eram baseadas em suposições, e não na verdade dos fatos. Até 2019, mais da metade dos recursos das agências de fomento à pesquisa já era direcionada a áreas fundamentais para o desenvolvimento do País, como ciências exatas, ciências biológicas e engenharias. Do R$ 1,1 bilhão pago em bolsas de estudo, só 10% vinham sendo destinados às ciências humanas. Além disso, as premissas adotadas pelo MEC e pelo MCTIC colidem com a tradição do trabalho científico e das pesquisas para o alargamento das fronteiras do conhecimento. Tais pesquisas são lentas por natureza, não podendo assim dar retorno imediato, lembraram as sociedades científicas.
Após a divulgação das portarias da Capes e do MCTIC, o que era perplexidade se converteu em indignação nas comunidades acadêmica e científica. Entre outros motivos, porque entre as novas prioridades estão as áreas que o MCTIC, invocando a “racionalização dos recursos financeiros”, chama de “estratégicas”, como tecnologia espacial e segurança pública. A indignação das comunidades acadêmica e científica aumentou ainda mais porque, na mesma semana em que o MCTIC divulgou que reduzirá as verbas do CNPq para a área de ciências humanas, o presidente Jair Bolsonaro determinou que os laboratórios químicos e farmacêuticos do Exército ampliem a fabricação de hidroxicloroquina, para usá-la como medicamento para combater a covid-19.
Além de lamentar que serão consumidos recursos escassos que poderiam ser mais bem utilizados em pesquisas na área de ciências da saúde, as sociedades científicas advertem que não há comprovação médica de que a hidroxicloroquina seja eficaz no tratamento de pacientes contaminados pelo novo coronavírus. Lideradas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, as entidades científicas também lembram que os cortes que a Capes e o CNPq promoverão no número de bolsas e no volume de recursos para financiamento de projetos no campo das ciências humanas revelam que o governo Bolsonaro desconhece a importância dessa área para a formulação de políticas públicas em matéria de ensino, saúde, infraestrutura e saneamento. Elas têm razão. Raras vezes se viu, entre nós, como a simbiose entre amadorismo, desinformação, inépcia e arrogância pode desorganizar o sistema de pós-graduação e ciência, levando a uma situação de terra arrasada nos setores mais estratégicos da administração pública.
29 de março de 2020