Medida foi rechaçada por outros países; especialistas alertam que desigualdade impede o isolamento de grupos específicos
O presidente Jair Bolsonaro defendeu na última terça-feira amenizar as medidas restritivas para frear o avanço do coronavírus no Brasil e, assim, tentar desafogar a economia. A diretriz dele é de que o isolamento domiciliar seja recomendado apenas para pessoas comprovadamente infectadas, idosas ou que tenham alguma comorbidade prévia ―estes dois últimos integram o grupo que tem maior risco de evoluir para casos graves da Covid-19. A estratégia que à primeira vista pode até parecer factível para tentar amenizar os impactos já sentidos na economia, porém, pode ser uma “armadilha”. Por enquanto, o Ministério da Saúde não muda a recomendação de isolamento geral.
Especialistas em saúde e entidades médicas, porém, alertam que retirar a recomendação do isolamento horizontal da população (aquele que não determina grupos específicos para permanecer em casa) pode acelerar o contágio e comprometer o sistema de saúde brasileiro mais rapidamente..
“A ideia teórica do isolamento vertical é de que você podia deixar os jovens circulando. Eles se infectariam e poderiam ficar imunes. Mas não sabemos como isso funciona com a Covid-19 nem conseguimos garantir o isolamento exclusivo de um grupo específico”, alerta o médico Valdes Bollela, professor Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Se por um lado a doença é nova e os próprios pesquisadores ainda tentam compreender a transmissão do coronavírus por assintomáticos e mesmo se é possível se reinfectar, por outro parece impossível que um país com as características sociais do Brasil consiga isolar completamente idosos e pessoas com comorbidades de seus familiares, já que este é o grupo que também costuma ser cuidado pelos familiares mais jovens.
“Você acha que se consegue separar todas as pessoas que são jovens das que têm mais de 60 anos? A ponto de garantir que em nenhum momento essas pessoas entrem em contato? Gente com HIV, diabetes e idosos que contam com seus familiares? Não consigo imaginar isso na vida real. Numa ideia teórica, é possível. Na prática, é uma armadilha”, afirma Bollela. Especialmente num país subdesenvolvido como o Brasil e com desigualdades sociais evidentes, é difícil garantir que pessoas mais jovens e crianças não terão contato com idosos. “No Brasil, muita gente depende justo dos cuidados dos filhos”, diz o médico. Ele destaca que mesmo um país mais rico como a Inglaterra considerou o isolamento vertical há cerca de 20 dias, mas desistiu por não considerar uma medida razoável para lidar com uma crise de saúde tão grave como esta que impacta o mundo inteiro.
Ainda que a estimativa do grupo de infectados que deve apresentar sintomas respiratórios graves seja de 20%, a quantidade absoluta de pessoas que precisará de cuidado hospitalar e de leitos de UTI é alta. Se o contágio continuar acelerado e muitas pessoas ficarem doentes ao mesmo tempo, o sistema de saúde pode colapsar, como o próprio ministro Mandetta já projetou: o risco alto de isso acontecer é em abril. “É irresponsável e cruel [afrouxar o isolamento] pensando na perspectiva do cidadão. Se acabar as vagas, quem precisar de atenção não vai ter. E não tem decisão judicial que possa garantir quando chega o colapso”, diz Bollela.
O Brasil tem a vantagem de ter um Sistema Único de Saúde (SUS) robusto, mas países ricos já colapsaram diante do alto volume de doentes ao mesmo tempo. No Brasil, os hospitais já atuam para tentar diminuir o tratamento de pessoas com outras doenças e liberar leitos para pessoas com a Covid-19. Cirurgias eletivas e até transplantes estão sendo suspensos. Estádios começam a ser adaptados para receber leitos hospitalares e deixar as estruturas tradicionais para ampliar a capacidade de aumentar os leitos de tratamento intensivo.
A tentativa do Ministério da Saúde brasileiro de seguir o plano atual de isolamento tem lastro na experiência internacional. Estudos sobre o comportamento da doença na China indicam que medidas drásticas relacionadas à circulação de pessoas foram fundamentais para frear a expansão da Covid-19.
No início do mês, outros países, como a Inglaterra, chegaram a considerar uma ideia semelhante à que Bolsonaro sugeriu, mas voltaram atrás antes de a implementarem. A compreensão tanto de gestores quanto de especialistas é a de que é impossível garantir que a população mais jovem que não esteja isolada não terá nenhum contato com os grupos isolados até por conta da dependência entre eles no dia a dia. Portanto, afrouxar as medidas restritivas pode ajudar a acelerar o contágio e fazer com que muitas pessoas fiquem doentes ao mesmo tempo, comprometendo rapidamente o sistema de saúde.