Future-se e nova carteirinha estudantil não emplacaram nas federais

Das 68 instituições de ensino superior, somente 25 se interessaram pelo programa de financiamento defendido por Arnaldo Lima, que se demitiu na semana passada

As políticas do governo Bolsonaro para o ensino superior  têm encontrado um obstáculo importante: as universidades federais. Duas das principais iniciativas do Ministério da Educação (MEC) — o programa Future-se e a ID Estudantil e a  — não emplacaram entre as instituições de ensino.

O Future-se é um programa que pretende aumentar a captação de receitas extras pelas instituições federais de ensino por meio do fomento à captação de recursos próprios e ao empreendedorismo. Já a ID Estudantil é a nova carteirinha para alunos de ensino básico e superior, em formato digital.

Segundo o MEC, até o início de janeiro, mais de cinco meses após o lançamento do Future-se, apenas 25 das 68 federais do país (36,8%) manifestaram interesse em aderir ao programa de financiamento.

Um dos principais formuladores e defensores do Future-se, o secretário de Educação Superior, Arnaldo Lima, pediu demissão na quinta-feira (30), alegando motivos pessoais.

“O Future-se é o que há de mais inovador na educação brasileira. O envio do Projeto de Lei para o Congresso Nacional encerrará minha missão no glorioso Ministério da Educação”, afirmou, em nota.

Lima chegou a se reunir diversas vezes com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Federais de Ensino Superior (Andifes) para negociar o Future-se, mas mesmo assim não obteve apoio consistente.

Autonomia universitária

Presidente da Andifes, João Carlos Salles afirma estar havendo “resistência” a projetos que, segundo ele, conduzem ao “desmonte” da universidade pública.

“As universidades não boicotam políticas públicas de nenhum governo, o que fazem é afirmar sua natureza e reagir a toda atitude de desmonte do patrimônio do nosso país. Reagir a tudo que significar descompromisso do governo com a educação. O que existe é uma atitude de reação. Não temos a intenção de fazer guerra com o governo”, disse Salles.

A crítica das federais ao Future-se é de que o programa fere a autonomia universitária garantida pela Constituição.

O modelo proposto pelo MEC prevê utilização de Organizações Sociais pelas federais e permite priorização de concessão de bolsas de estudo da Capes a universidades que apresentem bons resultados.

Atualmente, os recursos captados pelas universidades vão direto para o Tesouro, e as instituições acabam perdendo as verbas devido ao teto de gastos. Segundo fontes da área, o MEC tem utilizado a possível liberação desse dinheiro aprisionado junto ao Ministério da Economia como moeda de troca para que as federais acabem integrando-se ao programa.

Relatora do Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que pretende  liberar do teto de gastos os recursos próprios obtidos pelas universidades, Luísa Canziani (PTB-PR) defende que as instituições de ensino participem da confecção das políticas públicas.

“As universidades precisam participar da construção de projetos acerca do tema do ensino superior. Decisões não podem ser tomadas de forma unilateral”, opina a deputada. “A liberação dos recursos próprios é de suma importância para que o Brasil continue investindo no ensino superior, na ciência e na tecnologia”.

A terceira versão do projeto de lei do Future-se, que será enviado pelo MEC para o Congresso, ficou disponível para consulta pública até o dia 24 de janeiro. Depois disso, o ministério preparou um texto final para mandar ao Legislativo.

As universidades que tiverem interesse em aderir ao programa já podem se manifestar ao MEC, mas isso só será efetivado após uma eventual aprovação do projeto de lei.

Carteirinha

No caso da ID Estudantil, a adesão foi maior, mas ainda representa pouco mais da metade das universidades.

Dados obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação mostram que, até o dia 9 de janeiro, 36 das 68 universidades vinculadas à União (52,9%) haviam aderido ao Sistema Educacional Brasileiro (SEB), onde são depositados os dados para emissão das carteirinhas estudantis.

Instituições de peso como as federais do Rio (UFRJ), a Fluminense (UFF), a de Minas Gerais (UFMG) e a da Bahia (UFBA) estão entre as que não aderiram ao sistema.

A resistência das universidades à ID Estudantil, implementada por meio de uma Medida Provisória editada pelo presidente Bolsonaro, tem dois aspectos. Primeiro, as instituições temem que os dados dos alunos repassados ao governo sejam utilizados indevidamente. Além disso, muitas enxergam a medida como um “ataque político” do governo à União Nacional do Estudantes (UNE), que cobrava para emitir as carteirinhas.

“As informações solicitadas podem ser consideradas sigilosas, sensíveis e injustificadas para emissão de carteira estudantil”, diz texto, do Colégio de Pró-reitores de graduação da Andifes (Cograd) encaminhado à presidência da associação.

A orientação da Andifes foi de que cada federal procurasse a respectiva procuradoria para questionar sobre os riscos de disponibilizar as informações ao SEB organizado pelo MEC.

A MP que institui a ID Estudantil deixa de valer no dia 16 de fevereiro, caso não seja votada no Congresso. E o governo poderá ter dificuldades em aprovar a medida porque o líder do PC do B e ex-presidente da UNE, Orlando Silva (PCdoB-SP), é próximo de Rodrigo Maia e tem articulado para arquivar a medida.

‘Falta diálogo’

Antes da MP, somente as entidades representativas dos estudantes, como a UNE, podiam emitir o documento. A ID estudantil do governo já está no ar e até a manhã da última sexta-feira (31), 230. 596 carteirinhas foram emitidas. Número baixo frente às cerca de 48 milhões de matrículas na educação básica brasileira e 8 milhões no ensino superior.

“A baixa adesão se dá em especial porque as universidades não confiam no que o MEC poderá fazer com dados privados de seus estudantes. Algumas instituições que aderiram ao programa têm sido questionadas por estudantes e entidades estudantis” afirma o presidente da UNE, Iago Montalvão. “O MEC fez novamente o que tem feito durante toda a gestão, empurrando políticas sem diálogo com as comunidades e reitores. Isso faz com que a reação seja de não envolvimento de quem está na ponta”.

O deputado João Campos (PSB-PE) acompanhou a fundo as políticas para educação superior durante o ano de 2019. Relator da Comissão Externa de Acompanhamento do MEC na Câmara (Comex/MEC), Campos opina que a pouca adesão das federais aos programas é reflexo da falta de transparência do MEC e do desvio de função dos projetos propostos.

Para ele, as políticas também são problemáticas e afetam a autonomia universitária, além de oferecer risco à privacidade dos estudantes. Em dezembro, a Comex recomendou ao MEC que desse prioridade ao financiamento de pesquisas e garantisse acesso a recursos independentemente do Future-se.

“Não é à toa que esses programas sofram tanta resistência e crítica. Enquanto não houver transparência, clareza e detalhamento sobre cada ponto, não pode ser algo positivo.  Ninguém sabe o que é o Future-se. O MEC faz duas consultas públicas, mas não há a devolutiva”. critica Campos.  “Em relação à ID Estudantil, já começa errada na sua criação. O governo não pode legislar apenas por MP. Isso é um absurdo. Vejo essa proposta como uma tentativa clara do presidente de acabar com a organização dos estudantes, que tem sido o principal foco de resistência”, conclui.

O GLOBO procurou o MEC para comentar sobre a baixa adesão aos programas da pasta mas o órgão não respondeu.

O Globo