Em entrevista, reitor da UFBA afirma que federais enfrentam pior momento desde a redemocratização
Reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) desde 2014, eleita a 31ª melhor universidade da América Latina em 2019 pelo ranking da revista inglesa Times Higher Education, João Carlos Salles assumiu em julho do ano passado o desafio de presidir a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) no momento histórico que julga de maior “hostilidade e incompreensão da vida universitária” desde a redemocratização.
Doutor em Filosofia e reitor da UFBA, o docente esteve na UFRGS para palestrar sobre autonomia universitária. Em entrevista ao Jornal Universitário, falou sobre a medida provisória que altera o processo de escolha dos reitores, os ataques que o governo federal tem direcionado ao ensino público superior e o Future-se.
O senhor foi eleito presidente da Andifes em julho do ano passado, momento em que o governo tem atacado as universidades públicas e questionado pesquisas científicas, inclusive com o corte de verbas. Como planeja atuar na entidade diante desse cenário?
Diante de um cenário atípico como esse, inusitado e sem precedentes, nós precisamos, por um lado, melhorar a nossa relação com a sociedade, comunicar melhor nossas pesquisas e mostrar o que fazemos, enfim, o que a universidade é. E a universidade é um lugar que tem problemas, sem dúvida. Nela, pode haver a reprodução de privilégios, a mera repetição, conflitos, mas é sobretudo um lugar no qual se ampliam direitos, colabora-se cientificamente. É lugar de criação e de criatividade, que está em sintonia com valores elevados da sociedade. A universidade sempre tem a capacidade de refletir sobre seus problemas e superar as suas limitações; é um lugar, portanto, a ser protegido, mas que precisa mostrar para a sociedade seu papel, suas características como patrimônio da cultura do Ocidente. Por outro lado, precisamos reagir com precisão, sem nos levar por qualquer motivação política, mas, sim, com uma motivação objetiva de defesa do conhecimento produzido, da qualidade das nossas instituições e da integridade dos gestores. E, claro, reagir a ataques que parecem significar uma vontade de desmonte das universidades. Então, temos duas frentes: por um lado, melhorar a comunicação com a sociedade, mostrar aquilo que nós fazemos; por outro, reagir politicamente e até juridicamente, como agora parece ser o caso.
Este é o pior momento desde a redemocratização?
É o momento mais forte de manifestações de hostilidade e de incompreensão da vida universitária, de retrocesso em relação àquilo que a universidade representa. É um momento negativamente singular.
Na véspera do Natal, quando as atenções não estavam voltadas para as notícias e vários servidores estavam em recesso, o governo federal publicou a Medida Provisória 914, que altera o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais. O senhor acha que foi uma estratégia para diminuir uma possível repercussão negativa?
A edição da Medida Provisória na véspera da Natal acentua um abuso legislativo. Como existe legislação prévia e, aliás, não há qualquer eleição prevista nas Universidades Federais no período de vigência da Medida, não há urgência nem relevância que justifiquem o recurso a tal expediente, que, assim, serve apenas para limitar um debate a ser desenvolvido no Congresso Nacional.
Quais as principais mudanças determinadas pela MP e qual o impacto delas nas universidades?
Devemos destacar que temos convivido ao longo dos anos com um procedimento anômalo, se consideramos a autonomia constitucional concedida às universidades. A elaboração de uma lista tríplice significa, afinal, que o processo não se encerra na própria instituição, que, por conseguinte, a escolha é dependente de uma vontade estranha à comunidade. Se convivemos com tal expediente por tanto tempo, isso se devia ao fato de que a vontade da comunidade estava sendo respeitada e sempre se nomeava o candidato mais votado, encaminhado como primeiro nome da lista. Ora, esse pacto acabou. Em 2019, quase metade dos nomeados não estava na primeira posição na lista.
Agora, de modo mais grave, a Medida Provisória quer facilitar a indicação de nomes que não são os mais representativos, e faz isso procedendo a um desvio de finalidade na consulta realizada na comunidade. Faz parecer democrático algo que deixa de representar a vontade da maioria, pois não fazemos consulta para compor uma lista. Fazemos consulta porque queremos escolher nossos dirigentes. E trabalhamos em seguida para que a vontade da comunidade seja respeitada. Essa mudança no papel da consulta volta-se sim, claramente, contra a vontade da comunidade que simula representar.
Tanto é assim que foi retirada dos Institutos Federais a prerrogativa que eles tinham de indicar um único nome. Agora, para universidades e institutos, a consulta se torna formal e obrigatória, mas não para indicar um único nome. Mais ainda, um reitor eventualmente nomeado sem a devida representatividade passa agora a contar com poderes maiores para suprimir a vontade da comunidade e se impor, pois não precisa realizar consulta para a escolha de diretores e do vice-reitor, o que diminui a participação democrática da comunidade na definição dos dirigentes. Enfim, outra mudança é tornar obrigatória a proporção de 70% para docentes, com 15% para técnicos e 15% para estudantes. Ora, essa proporção é praticada em algumas universidades, com razões aceitas pela comunidade da instituição. Porém, em outras universidades (creio que na maioria), pratica-se a paridade no peso das categorias. O retrocesso está em que, nesse caso, a instituição deixa de poder decidir, com sua história, sua experiência e suas razões, qual o peso que julga mais adequado.
Antes de publicar a MP, o governo já tinha interferido em metade das universidades federais que tiveram eleições para a reitoria, nomeando seis reitores com poucos votos ou até mesmo fora da lista tríplice. Como isso impacta na autonomia dessas universidades?
Até o momento, temos sim um número significativo de reitores nomeados não sendo respeitada a primeira colocação da lista; mas, tirando um caso sub judice, o governo tem exercido a prerrogativa legal de escolher um dos nomes da lista. A pergunta é: isso é correto? Isso se justifica? Parece duplamente incorreto. Primeiro, porque retira a autonomia da universidade, considerando assim que as comunidades são imaturas.
A autonomia é o exercício de uma mente coletiva esclarecida que escolheu um dirigente. Desrespeitar isso é tornar uma comunidade inepta. Não é desrespeitar A, B ou C que esteja na lista, mas rebaixar a comunidade da universidade.
Segundo, fora esse aspecto, que é um aspecto de exercício não democrático, não respeitoso com a vontade autônoma da universidade, nós podemos considerar que essas medidas são de má gestão, porque escolher alguém que não está em sintonia com a comunidade é, certamente, provocar dissabores. É escolher alguém que não conhece o bastante, que não tem o diálogo mais bem elaborado com a comunidade. Não parece ser um acerto administrativo, é mais uma preferência política e, com isso, uma injunção na vida das universidades. A Andifes defende que deva ser escolhido sempre o primeiro da lista encaminhada pelos conselhos universitários, que seja, enfim, respeitada a vontade da comunidade.
Existe um grande movimento de eleição dentro das universidades, com mobilização de professores, técnicos e alunos.
É um momento de reflexão da universidade, que indica um nome como representante. Nesse sentido, [não escolher o primeiro da lista] aumenta um déficit de representação, que é tão necessária às instituições. As universidades exercem a democracia por meio de mecanismos de representação ao escolher os dirigentes. Ao não terem essa vontade respeitada, têm a imagem ferida e a capacidade de se expressarem autonomamente diminuída.
A Andifes tomará alguma atitude em relação a isso?
A Andifes mantém a sua posição acerca disso, tem inclusive uma nota pública sobre a importância de se respeitar a vontade da comunidade. Cada universidade deve desenvolver sua própria forma de escolha, de expressar melhor a sua vontade.
Em novembro, o ministro da Educação Abraham Weitraub afirmou à imprensa que universidades federais têm “plantações extensivas de maconha” e utilizam os laboratórios para produção de drogas sintéticas, como metanfetamina. Em nota, a Andifes afirmou que “está tomando as providências jurídicas cabíveis”. Quais são elas?
Não é novidade, nesse cenário, a ocorrência de declarações desairosas do ministro [da Educação] sobre as universidades. Houve uma mudança, porém. Em um vídeo gravado, ele indica a prática de crimes e diz que tais crimes estariam distribuídos por todas as universidades. O ministro chega a usar a expressão de que “cada enxadada é uma minhoca”, ou seja, como se estivéssemos, em toda parte, em um terreno podre. Isso é inadmissível. Ou isso faz parte de um ataque leviano às universidades, falso – uma estratégia, portanto, de descaracterização de um bem público –, ou o ministro tem informações privilegiadas e prevaricou, no sentido de que ele não tomou as providências de indicar para as autoridades competentes quando e onde estavam acontecendo esses crimes. Então, essa maneira generalizada nos sugere a necessidade de uma interpelação, e essa providência está sendo encaminhada por nossa assessoria jurídica.
O que vocês vão argumentar na Justiça?
Temos que investigar e esclarecer a natureza das declarações dele para verificar se foi difamação, crime de injúria, denúncia não amparada em evidências ou se apenas significa uma pobreza argumentativa, generalizando apressadamente a partir de fatos inconsistentes com a vida universitária algo que serviria tão somente para desabonar a imagem das instituições e dos gestores diante da opinião pública.
Nas redes sociais, Weitraub tem divulgado tanto uma operação da Polícia Civil de Brasília que apreendeu pés de maconha que estariam sendo cultivados em uma área da UNB por alunos e ex-alunos como outra da Polícia Civil de Belo Horizonte que investiga a suspeita de que alunos estariam usando insumos da UFMG para fabricar drogas, fatos negados pelas instituições, como justificativas às suas afirmações. Qual a posição da Andifes sobre isso?
Nós temos que recuperar a dimensão pública das instituições. As redes sociais parecem favorecer mais o ataque do que o estudo respeitoso, porque cabe ao gestor público proteger as instituições e ajudá-las a superar as dificuldades, e não hostilizá-las. Com isso, parece que estamos nos defrontando com uma estratégia política que procura mais o efeito retórico do que algo que tenha a ver com a postura de um gestor público.
Existe um código de ética do servidor público que precisa ser lembrado. O servidor zela pela instituição e deve ter uma conduta que envolva decoro, compostura e respeito a outro servidor. Nos códigos de conduta da alta administração pública, esses valores são pensados e normatizados. O deslizamento que nós encontramos no país dessa dimensão das relações institucionais para as redes sociais faz com que valores próprios da administração pública sejam hoje ignorados como desimportantes. Parece importar mais o efeito que essa fala de ataque tem para os seguidores das redes sociais do que o bem público.
Nós temos que voltar a valorizar o espaço público, a dimensão pública e os ambientes de debate. Temos que criar canais mais amplos de esclarecimento à sociedade acerca do que nós fazemos efetivamente. A sociedade sabe da importância desse investimento no aluno, na formação, na conquista de uma tecnologia, na produção de novos conhecimentos e na independência intelectual da nação? Será que a sociedade tem a dimensão do que é feito e onde ainda é muito necessário investir? São tarefas que só podem ser bem cumpridas se a gente privilegia mais canais consistentes de divulgação e menos esse conflito armado das redes sociais, como se estivéssemos vivendo um período de permanente eleição.
A Andifes tomará alguma atitude em relação a esses posts?
A nossa assessoria jurídica está analisando quais as atitudes mais adequadas neste caso.
Em agosto, como reitor da UFBA, o senhor apoiou a decisão do conselho universitário de rejeitar o Future-se. Quais os pontos mais críticos dessa proposta?
No caso da UFBA, nós fizemos um debate paciente em todas as nossas unidades e houve uma rejeição unânime. Não foi uma unanimidade sem estudo, sem reflexão. Ao contrário, foi bem pensada. A partir da experiência de cada unidade, foram examinadas as características desse programa e se percebeu que ele desrespeita um elemento fundamental da Constituição que relaciona a autonomia ao princípio indissociável de ensino, pesquisa e extensão. Ele apresenta uma proposta unilateral que não reforça essa dimensão múltipla e plena da universidade. Há vários motivos de preocupação em relação à autonomia da universidade no projeto, como a obscuridade de certos pontos sobre o comitê gestor, a figura do contrato de desempenho e a renúncia, de certa forma, da própria gestão de contratos pela universidade. A natureza dos fundos também foi pouco definida e pouco estudada, talvez lançando mão do patrimônio das próprias instituições para amparar uma possível ampliação do orçamento. Foi uma rejeição muito bem pensada, que combate também algo que estaria implícito, que é a ideia de que o Estado deva renunciar a seu compromisso de financiamento público do ensino superior.
Outras universidades também rejeitaram o Future-se. Qual a importância dessas decisões? Isso fará com que a proposta seja descartada pelo governo?
Eu acho que essas rejeições têm que ser levadas em conta pelo governo, porque todas as universidades que se manifestaram rejeitaram [a proposta]. Não houve nenhuma instituição que tenha formalmente aprovado a adesão. O governo disse que apresentaria um projeto de lei, o que ainda estamos aguardando para verificar se será o caminho. De nossa parte, vamos continuar lutando pela autonomia da universidade e pelo financiamento público para o ensino superior.
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