Relatório preliminar de uma comissão de educação formada por 50 deputados concluiu que ‘o planejamento e a gestão do MEC (estão) aquém do esperado’
Desde o dinheiro que financia a maior parte da educação básica pública e mudanças na formação de professores, até o modelo de funcionamento das universidades federais e a própria permanência do ministro da Educação no cargo. Esses são alguns dos temas que devem dominar os debates educacionais do Brasil em 2020, depois de um ano turbulento em um dos ministérios mais importantes do país.
Em 2019, primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub assumiu o Ministério da Educação (MEC) em abril, com o objetivo de “acalmar os ânimos” depois das polêmicas envolvendo seu antecessor, Ricardo Vélez. As polêmicas, porém, estavam longe de terminar: primeiro, o MEC teve um contingenciamento de verbas de cerca de R$ 6 bilhões (segundo o ministério, esse dinheiro já foi liberado), à espera da reforma da Previdência e por causa do que o ministro chamou de “situação dramática do país do ponto de vista fiscal”.
Quem primeiro sentiu os efeitos foram as universidades federais, que tiveram recursos congelados e foram alvo de acusações, por parte de Weintraub — sem que tenham sido oferecidas provas concretas —, de “balbúrdia” e de terem “plantações de maconha” e “laboratórios de drogas”.
O ensino superior foi afetado também pelo congelamento do orçamento da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que levou ao corte de bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Segundo a Capes, o orçamento da instituição já foi restaurado.
Na educação básica, o panorama tampouco foi alentador. Um relatório preliminar de uma comissão de educação formada por 50 deputados, tornado público em novembro pelo jornal Estado de S.Paulo, concluiu que “o planejamento e a gestão do MEC (estão) aquém do esperado”, sem que haja “priorizações, clareza nas metas, prazos ou responsáveis para as ações propostas”.
O MEC se disse “aberto ao diálogo” e afirmou que áreas técnicas estão analisando o relatório para avaliar possíveis contribuições a ele. Sobre as opiniões de especialistas citadas na reportagem abaixo, o ministério afirmou que não se manifestaria. Essas discussões provavelmente vão se estender ao longo de 2020, ao lado de questões decisivas para a educação brasileira no ano que vem.
A maior parte (cerca de 60%) dos gastos na educação pública brasileira vem do Fundeb, um fundo bilionário de dinheiro público que entrou em vigor em 2007, mas que, por lei, expira em 31 de dezembro de 2020. Ou seja, obrigatoriamente até o final do ano, governo e Congresso têm de aprovar o que vai acontecer com o Fundeb — caso contrário haverá uma desordem total no pagamento de salários de professores, manutenção e construção de escolas etc. “Sem o Fundeb seria o caos absoluto, porque a maior parte dos municípios depende do fundo para garantir a folha de pagamento”, explica à BBC News Brasil Binho Marques, que foi secretário de Educação e governador do Acre pelo PT e hoje é gestor de políticas públicas.
É que estamos falando de muito dinheiro: em 2018, o Fundeb contou com R$ 150 bilhões, sendo 90% deles pagos por Estados e municípios (via impostos como ICMS) e 10% pagos pelo governo federal.
A discussão sobre o Fundeb se estendeu por boa parte de 2019 no Congresso, mas sem um consenso. Um relatório preliminar apresentado pela deputada Professora Dorinha (DEM-TO), relatora do tema na Câmara, prevê que o dinheiro injetado pelo governo federal aumente desses atuais 10% para 15% a partir de 2021 e, gradativamente, chegue até 40%, desafogando assim Estados e municípios.
O governo federal, por enquanto, tem se recusado a aumentar sua contribuição para além de 15%, afirmando que chegar a 40% teria um impacto de R$ 279,8 bilhões em seu orçamento até 2031. O MEC afirmou em dezembro que terá uma proposta própria para um novo Fundeb, que “leva em consideração a responsabilidade fiscal com as contas públicas ao mesmo tempo que garante um piso, tecnicamente recomendável, para garantir a boa educação de uma criança”.
“Municípios e Estados precisam de mais recursos para fazer as escolas funcionarem e pagar salários”, queixa-se à BBC News Brasil Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que defende que o governo federal chegue ao patamar de 40%. Ele argumenta que, diante dos recentes cortes orçamentários em outras áreas do MEC, é possível que, ficando apenas no patamar de 15%, os aportes do governo federal acabem, na ponta do lápis, menores do que eram antes. Diante do impasse, e considerando que o Congresso funcionará em ritmo reduzido no segundo semestre do ano que vem (por causa das eleições municipais), Cara prevê que é possível que o Fundeb acabe sendo prorrogado, em seu modelo atual, em vez de alterado. “Não é a pior alternativa — pior é não ter Fundeb”, diz.
Para Olavo Nogueira Filho, diretor de políticas educacionais da organização Todos Pela Educação, embora a discussão em torno do financiamento esteja travada, foi possível encontrar convergência no Congresso em outros pontos relacionados ao Fundeb, por exemplo, melhorando a distribuição de dinheiro não apenas para os Estados mais pobres, mas também para municípios mais pobres dentro de Estados mais ricos. Melhorar a formação de professores é considerado crucial no Brasil, mas existe um grande debate sobre como colocar isso em prática. O MEC acaba de homologar, em 20 de dezembro, uma resolução redigida por um órgão independente (embora associado ao ministério), o Conselho Nacional de Educação, com novas diretrizes para a formação de professores.
Essa resolução amplia a duração dos cursos de licenciatura (de 3 para 4 anos), obriga que ao menos 25% do curso seja presencial e dá mais ênfase na prática do dia a dia do ensino, e menos na teoria. “A resolução induz os cursos (de Pedagogia e licenciaturas) a estarem mais voltados à prática em salas de aula e com estágios desde o primeiro ano, em linha com o que fazem os países com melhores resultados na educação”, opina Nogueira, do Todos Pela Educação.
Embora não haja um calendário claro de quando essas mudanças começarão a entrar em prática, a resolução diz quais competências são esperadas nos cursos de Pedagogia, o que deve levar a mudanças no Enade (exame que avalia os alunos de cursos de graduação) — isso, por consequência, induzirá mudanças nos currículos de Pedagogia das universidades, diz Nogueira. Não há, no entanto, consenso em torno das ideias por trás da resolução, particularmente quanto a reduzir a teoria pedagógica.
“O professor sem teoria pedagógica é o mesmo que um engenheiro que não domina a matemática”, opina Daniel Cara. “Falar que o ensino é distante da prática é não conhecer a realidade do ensino superior privado brasileiro, onde só tem prática. (O problema é que) os alunos chegam com um déficit enorme da educação básica, sem serem capazes de formular um argumento, sem saber as operações matemáticas. Como ele vai dar aula assim?”
Para Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe) da FGV Rio, “não é que a teoria não faça sentido, mas é preciso ter um diálogo maior entre teoria e prática” do que é feito hoje nas escolas. Embora considere a resolução positiva, ela vê como desafio principal colocar o novo currículo de professores em prática.
Em dezembro, o MEC publicou uma portaria permitindo que até 40% da carga horária de cursos superiores seja feita à distância (o chamado EAD, de “educação à distância”), à exceção de Medicina. Antes, esse percentual era limitado a 20%, sendo ampliado a 40% apenas em alguns casos específicos. A portaria, segundo a agência Reuters, levou no mesmo dia a um aumento do valor, em bolsa, das ações dos grandes grupos de educação privada, que concentram a maior parte do ensino superior do país.
O modelo EAD é mais econômico para alunos e universidades, mas é visto com ceticismo por muitos especialistas em educação. “Não é um problema o ensino adulto ter parte de seu currículo em EAD, (…) mas o aprendizado (humano) é muito vivencial — precisamos de um ambiente de aprendizagem e não temos ainda tecnologias adequadas que substituam com qualidade a mediação” feita pelo professor e pelo ambiente de sala de aula, opina Claudia Costin.
Enquanto isso, no ensino público, existe preocupação quanto à saúde financeira das universidades federais, que, segundo o MEC, já tiveram suas verbas liberadas, mas agora estão diante de outro polêmico projeto do governo: o Future-se.
O projeto foi apresentado pelo MEC como uma forma de “dar maior autonomia financeira a universidades e institutos (federais) por meio do fomento à captação de recursos próprios e ao empreendedorismo”, de forma a complementar os orçamentos dessas instituições. No entanto, desde o lançamento do projeto, em julho, surgiram críticas de reitores e especialistas quanto a se o Future-se não pode, na verdade, diminuir a autonomia das universidades, que passariam a depender mais do capital privado do que do público.
Por enquanto, porém, isso está no plano dos debates: ainda não se sabe se o Future-se vai vigorar, nem em que formato. Segundo o secretário de Educação Superior, Arnaldo Lima, a ideia é enviá-lo como projeto de lei para tramitação no Congresso em 2020. O objetivo, diz ele ao site do MEC, é “reduzir as iniquidades que existem hoje no planejamento orçamentário” entre as universidades do país. “A ideia é que, com o Future-se, a gente tenha receitas adicionais de caráter privado. Aproximando as instituições federais de ensino superior ao setor produtivo que garante o aumento das nossas taxas de sucesso, de concluintes e, ao mesmo tempo também aumenta a empregabilidade dos nossos alunos.”
Segundo o MEC, em 2020 começarão a funcionar 54 escolas cívico-militares em 23 Estados e no Distrito Federal, em um projeto-piloto em parceria com o Ministério da Defesa. “Começam a funcionar já na volta às aulas. É um modelo que acreditamos que vai ter um amplo sucesso no Brasil”, afirmou em novembro o ministro Abraham Weintraub, prometendo orçamento de R$ 1 milhão para cada escola. O plano é implementar 216 instituições do tipo até 2023.
É prevista a atuação de militares da reserva na administração de escolas, mas também não está claro qual será o nível de interferência deles na área pedagógica. Existem, também, iniciativas estaduais: a Bahia, por exemplo, tem atualmente, segundo levantamento da Folha de S. Paulo, 83 escolas militarizadas, em parceria de prefeituras com a PM sob o governador Rui Costa (PT).
É um modelo bastante questionado por especialistas, desde sua viabilidade em âmbito nacional até sua essência. “Entendo a motivação por trás das escolas cívico-militares (de promover a disciplina nas escolas), mas se essa disciplina robotizar os alunos, eles não aprenderão as competências para, no futuro, não serem substituídos por máquinas no mercado de trabalho”, afirma Claudia Costin. “No curto prazo, ela pode melhorar as notas dos alunos, mas não os prepara para o mundo. É pelo protagonismo juvenil que se consegue disciplina.”
“É um programa bastante tímido do ponto de vista de escala” para um país do tamanho do Brasil, afirma Nogueira, do Todos Pela Educação. “Ainda bem, na verdade, porque é uma solução equivocada em política pública de larga escala. Pese ao desafio de segurança nas escolas, o modelo proposto vai contra ao que sistemas de excelência (no mundo) preveem.”
Outro perigo, opina Binho Marques, é que essas escolas acabem recebendo um aporte desproporcional de recursos do MEC, deixando menos para as demais. Se isso ocorrer, “será muito dinheiro gasto com poucos, o que aumenta a desigualdade”, diz. Nogueira e Costin afirmam que o Brasil já tem modelos melhores de educação no ensino médio, como o de educação integral implementado em Pernambuco e hoje em expansão para outros Estados, que prevê ensino com projetos e disciplinas eletivas e conexão entre os sonhos de vida dos alunos e o conteúdo ensinado na escola. “É uma solução mais passível de escala e que consegue oferecer um ambiente melhorado, com disciplina, mas seguindo a lógica de dar boas condições de trabalho (a alunos e professores) e um bom esforço pedagógico”, diz Nogueira.
Abraham Weintraub tem sido apontado por colunistas de política como um dos ministros que poderiam ser trocados por Jair Bolsonaro — algo que o presidente tem negado publicamente. “No meu entender, (Weintraub) está sendo excelente. Tem certos jornalistas criticando (mas) está tudo bem”, disse, segundo o Estado de S. Paulo, em 18 de dezembro.
Especialistas em educação, no entanto, são críticos tanto ao estilo combativo do ministro, quanto à própria gestão no MEC. Para Olavo Nogueira, do Todos Pela Educação, a educação brasileira não está parada, mas isso tem ocorrido “a despeito do MEC, que está ausente da produção de políticas efetivas. Foi lançada pelo governo uma Política Nacional de Alfabetização, mas na melhor das hipóteses temos um documento reunindo evidências, que não dá para chamar de política efetiva. Não está claro como ela como chegará nos alunos, quais são suas metas, plano de ação ou orçamento”.
“Mantido o atual ministro, o foco será o uso do MEC para a promoção da plataforma político-ideológica do governo Bolsonaro, e isso é muito ruim”, opina Nogueira. Daniel Cara, porém, avalia que Weintraub tem se fortalecido como um nome próximo ao clã Bolsonaro em São Paulo, região onde o presidente perdeu importantes aliados quando rompeu com seu antigo partido, o PSL.
“O que me angustia é que o debate está muito dedicado a criticar o ministro, e não ao governo como um todo, quando na verdade o ministro cumpre com uma agenda de governo e é fiel a ela”, opina. Binho Marques diz que outra preocupação do setor é com a possibilidade de que se acabe com o patamar mínimo que Estados e municípios têm que investir em educação e saúde — segundo a Folha de S. Paulo noticiou em outubro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, estuda medida do tipo, que desobrigaria governos a investir nessas áreas. “Foi um ano de grande retrocesso para a educação”, opina Marques, citando também o fim (ainda na gestão Vélez) da secretaria do MEC responsável por promover inclusão e igualdade na educação. Weintraub, por sua vez, tem dito que o MEC sob Bolsonaro promove “gestão, eficiência e respeito ao pagador de impostos”.
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