Primeira reitora da UNB, a geóloga Márcia Abrahão saneou as contas da instituição em 2018; confira a entrevista concedida à revista Carta Capital
Quando o ministro Abraham Weintraub lançou a sua cruzada moral contra as comunidades acadêmicas povoadas por “sem-terra” e “gente pelada”, a Universidade de Brasília foi uma das primeiras atingidas pelo bloqueio de 30% dos recursos orçamentários. Há três anos no comando da instituição, a geóloga Márcia Abrahão não se abalou. Enfrentou situação pior no governo Temer, quando a UnB passou pela maior crise financeira desde a sua criação, em 1962.
Apesar de viver no aperto, a universidade tem mecanismos de geração de receita própria, mas boa parte dos recursos acaba apropriada pelo Tesouro. É por isso que, em sua luta por maior autonomia financeira e administrativa, Márcia Abrahão dá pouca importância aos ataques do ministro falastrão. “Embora não tenha nada contra ele, até porque mal o conheço, Weintraub tem preconceito em relação às universidades públicas, parece conhecer pouco dessas instituições”, diz. “Eu, inclusive, o convidei para conhecer a UnB. Isso o teria poupado de declarações constrangedoras, por falta de conhecimento.”
CartaCapital: Quando a senhora assumiu a reitoria da UnB, qual era o cenário?
Marcia Abrahão: Em 2017, meu primeiro ano efetivo de gestão, a UnB sofreu um corte orçamentário da ordem de 45% em relação ao ano anterior. Desde o início, fui obrigada a fazer cortes profundos na instituição, para que ela não deixasse de funcionar ao longo daquele ano. Tomei as decisões necessárias, depois de chamar a comunidade acadêmica e abrir o orçamento. À época, o ministro da Educação, Mendonça Filho, foi mais atencioso e abriu uma possibilidade de socorrer a universidade. Quando Rossieli Soares ocupou o cargo, ainda no governo Temer, após a saída de Mendonça Filho, sinto que ele se voltou contra mim, chegou a questionar o meu posicionamento político à frente da instituição. Estava no auge dos cortes e os estudantes protestavam contra o Ministério da Educação. Com o tempo e algum diálogo, ele viu que eu conseguia separar muito bem o posicionamento político do institucional.
CC: Em 2018, a senhora afirmou que as contas da UnB estavam equilibradas e que o déficit, da ordem de 92,3 milhões de reais, tinha ficado no passado. Quando essa crise começou exatamente?
MA: Em 2014, a UnB transformou o Cesp, que promovia eventos e organizava concursos públicos, em uma organização social, a Cebraspe. Dessa forma, perdemos o orçamento desse centro. Aí começa o desequilíbrio orçamentário. Além disso, a universidade contava com uma complementação orçamentária por parte do Ministério da Educação, que deixou de acontecer a partir de 2017, ano em que começou a vigorar a emenda do Teto de Gastos Públicos. A universidade sentiu o tranco e viu as contas se descontrolarem. Até então, a UnB quitava as suas contas no fim do ano com esse crédito suplementar. Em 2016, ele foi de 80 milhões de reais. Desde 2018, nós nos adaptamos à nova situação, mas não estamos satisfeitos.
CC: Com o quê?
MA: Não concordamos com o congelamento dos gastos públicos e com a redução do orçamento. Mas isso não é tudo. Temos arrecadação própria, com aluguel de imóveis e execução de projetos. No ano passado, 90 milhões de reais dessa receita foram apropriados pelo governo. Desse montante, ao menos 70 milhões foram utilizados pelo Ministério do Planejamento para pagar aposentados e pensionistas. Se geramos receitas acima do previsto na lei orçamentária, o Tesouro fica com os recursos excedentes. Teoricamente, esse dinheiro seria para investimento nas próprias universidades, como a complementação na área de pesquisa. Na prática, isso não ocorre. Vale lembrar que a Constituição deixa claro que o financiamento da Educação é um dever do Estado.
CC: É curioso. Enquanto a receita gerada pela universidade é confiscada pelo Tesouro, o programa Future-se, do Ministério da Educação, tenta estimular o “empreendedorismo” na academia…
MA: Sim, e a proposta reduz ainda mais a nossa autonomia. Precisamos de liberdade para utilizar os recursos que arrecadamos, como sugere uma proposta de emenda constitucional na Câmara, apresentada pela deputada Luisa Canziani. Se aprovada, teremos autossuficiência financeira. Isso é bem diferente da lógica do “vire-se para gerar receita”. De toda forma, o governo precisa financiar o básico, a manutenção das instituições. Além disso, é preciso respeitar a autonomia administrativa, o que implica a aceitação dos reitores escolhidos democraticamente pelas comunidades acadêmicas. Essas questões o Future-se não aborda. Por isso, não atende às reais demandas das universidades.
CC: Em abril, o Ministério da Educação bloqueou cerca de 30% do orçamento das universidades. Acusada de “promover a balbúrdia”, a UnB foi uma das primeiras a sofrer cortes. Isso resultou em uma nova crise?
MA: Não digo uma nova crise, mas gerou instabilidade em nosso planejamento. Perdemos 48,5 milhões de reais no ano. Consegui segurar a situação até determinado momento, mas isso custou a renovação parcial de contratos, a retirada de dinheiro dos institutos, das faculdades e dos editais de apoio ao ensino e pesquisa. Quanto à “balbúrdia” mencionada pelo ministro, a UnB é historicamente protagonista das grandes discussões da sociedade e isso tem sido fortalecido com a nossa gestão, o que provavelmente o incomodou bastante, e me deixa feliz.
CC: Como a senhora avalia a gestão de Abraham Weintraub?
MA: Embora não tenha nada contra ele, até porque mal o conheço, Weintraub tem preconceito em relação às universidades públicas, parece conhecer pouco dessas instituições. Eu, inclusive, o convidei para conhecer a UnB. Isso o teria poupado de declarações constrangedoras, por falta de conhecimento. Meu papel institucional é, no entanto, fazer um contraponto e mostrar o que fazemos de melhor: ensino, pesquisa e extensão. Essa é a resposta a dar a qualquer crítico da universidade, seja ele do governo ou não.
CC: Quais são seus atuais desafios à frente da UnB?
MA: Desde que assumi a reitoria, o meu grande desafio é manter a UnB em funcionamento. Depois, defendê-la dos ataques. E, não menos importante, lutar pela sua autonomia e altivez. A UnB não se curva a governos, e mantém a sua trajetória de excelência.