Colunista da Folha alerta para medida que permite redução de 25% da jornada de servidores públicos; confira o artigo de Vinicius Torres Freire
O governo federal não pode tomar empréstimo que não seja para financiar investimentos (em obras, por exemplo). Ou seja, não pode fazer dívida para pagar despesa corrente: salário, aposentadoria, café, papel ou passagem de avião. É o que diz, grosso modo, a “regra de ouro”, já inscrita na Constituição e que tem sido descumprida com autorizações extraordinárias do Congresso.
Na emenda constitucional que o governo enviou nesta semana ao Senado, caso o governo tenha déficit tamanho que seja necessário fazer tal dívida proibida, entram em vigor medidas drásticas de contenção de despesa, emergência que deve durar anos, dado o estado das contas públicas.
Pacote traz um conjunto de propostas para dar maior flexibilidade ao Orçamento, ações para elevar os repasses de recursos a estados e municípios (pacto federativo), além da revisão de cerca de 280 fundos públicos
Quantos anos? No mínimo, até o final do mandato de Jair Bolsonaro.
Nas medidas de corte, prevê-se que será possível reduzir em até 25% a jornada de trabalho e os salários dos servidores de todos os Poderes. Ficam suspensas as promoções (com exceção daquelas de militares, policiais, juízes e diplomatas). Embora seja necessário de algum modo limitar a despesa com o funcionalismo, esse “algum modo” pode ter consequências sociais sérias. Qual o efeito, por exemplo, de restringir a jornada de profissionais da área de saúde? De professores universitários?
Outra contenção prevista atinge o BNDES, que deixaria de receber o dinheiro que vem anualmente do Fundo de Amparo ao Trabalhador (do Pis/Pasep). Mesmo sem essa suspensão extraordinária, emenda proposta esta semana pelo governo já prevê a redução do repasse ao bancão estatal de desenvolvimento (de 40% do Pis/Pasep para 14%). Dada a perspectiva de anos de arrocho, o BNDES vai encolher ainda mais.
Além dessas providências, automaticamente entram em vigor todas as medidas de contenção de despesas previstas para o caso de estouro do “teto de gastos” (que é outro limite constitucional para a despesa federal).
Isto é, não haveria aumento ou qualquer concessão de benefício extra a servidores. Ficariam vedadas a criação de cargos, alteração de carreiras, concursos e o que mais gere despesa nova. Estaria proibido o reajuste de gasto obrigatório além da inflação (caso de benefícios da Previdência e, por tabela, do salário mínimo).
Ressalte-se que continuam a existir duas regras de limitação do gasto público, embora reescritas (o “teto de gastos” e a “regra de ouro”). No caso do “teto”, as medidas de contenção de despesa seriam detonadas sempre que o gasto obrigatório superasse 95% do gasto total (desconsideradas despesas com juros). Ou seja, haveria uma nova medida do “teto”: um “teto abaixo do teto”.
Em suma e na prática, o gatilho para cortes de despesas pode vir a ser acionado mais cedo, no caso do teto. Mas qual a definição de despesa “obrigatória”? Obviamente, pagamento de benefícios previdenciários é gasto obrigatório. Mas pode haver controvérsia quanto a outras despesas, o que também é opinião de técnicos da Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado e que analisa as contas públicas.
Outras mudanças previstas pelo pacotão ainda causam polêmica. Uma emenda suprime um artigo das disposições constitucionais transitórias que especificava o reajuste ao menos pela inflação do Benefício de Prestação Continuada (BPC, um salário mínimo mensal para cerca de 4,7 milhões de idosos e deficientes muito pobres, uma despesa anual de R$ 57 bilhões). Porém, não suprimiu o artigo do corpo da Constituição que prevê tal reajuste.
Vinicius Torres Freire é jornalista e mestre em administração pública pela Universidade Harvard
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