Confira a análise comparativa feita pelo professor e ex-reitor da UFRJ Roberto Leher
Em julho de 2019, em meio ao confronto com a comunidade universitária brasileira, advindo de forte bloqueio orçamentário e de ataques à dignidade das instituições, conflito que pode ser evidenciado pelas grandes manifestações de maio de 2019 (#15M, #30M), o MEC publicizou seu projeto monocrático denominado Future-Se. Uma de suas principais nervuras apregoava um contrato de gestão da instituição de ensino superior com uma Organização Social que, por sua vez, estaria vinculada a um fundo de investimento, tornando letra morta a autonomia constitucional. Essa proposição gerou forte reação da comunidade universitária e dos institutos federais de educação tecnológica que em sua esmagadora maioria rejeitou o Future-Se.
Objetivando reduzir a conflitividade, o MEC apresentou uma nova versão do Future-Se (aqui denominada como Future-Se 2) em meados de outubro de 2019. Nesta versão, o MEC introduziu no Projeto um “contrato de desempenho” (Art.3, Art.5, Art. 9) supostamente nos termos do §8oart. 37, Constituição Federal que, uma vez firmado, terá como contrapartida a concessão de benefícios especiais.
Considerando a novidade do “contrato de desempenho”, é preciso examinar o referido parágrafo §8º do art. 37 da Constituição Federal (CF). É necessário destacar que este parágrafo inexistia no texto original de 1988, incluído pela EC 19, de 1998, como parte do Plano Diretor da Reforma do Estado de Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo:
§ 8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – o prazo de duração do contrato;
II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;
III – a remuneração do pessoal.”
Cabe observar que a Carta menciona “contrato” e não “contrato por desempenho” (eufemismo para contrato de gestão) e, ainda, que a Constituição condicionou o tema a norma específica “cabendo à lei dispor”. De fato, a qualificação da natureza do contrato como “por desempenho” o aproxima dos ‘contratos de gestão’ que igualmente têm como parâmetro metas e desempenho e objetiva flexibilizar, por exemplo, a folha de pagamentos, por meio da liberdade para fixar salários de seus servidores, em conformidade com o atingimento das metas do contrato de gestão. Como assinalado, inexiste legislação específica para normatizar tais contratos (duração do contrato, controles e critérios de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidades dos dirigentes e sobre a remuneração do pessoal).
Com a improvisação que tem sido característica, o MEC elabora um projeto assentado em uma forma de contrato que sequer está normatizado como lei, novamente colocando as universidades em um nefasto ambiente de insegurança e incerteza.
Voltando ao mérito do mencionado contrato, ainda inexistente na norma, é evidente que o teor do parágrafo §8º do art. 37 da Constituição Federal não se refere ao caso das universidades federais, dotadas que são de autonomia específica pela mesma Carta Magna: a autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial já está assegurada no Art. 207, CF. Assim, não cabe estabelecer para as universidades um contrato para ampliar uma autonomia já estabelecida constitucionalmente. O intento de desconsiderar o Artigo 207 para que a autonomia esteja associada a um “contrato de desempenho” não apenas é ilógico, como é um inequívoco intento de negar o que a Constituição já assegurou explicitamente às universidades.
Como se trata de um contrato da universidade ou IFET com o MEC (o polo contratante ativo) haverá redução da autonomia gerencial, orçamentária e financeira das Instituições Federais (IF) em virtude da própria existência de termos obrigatórios no referido contrato. A autonomia fica restringida visto a exigência de sujeição ao contrato de gestão, a rigor, o conceito que explicita o contrato de desempenho. Embora elaborado em conjunto (IF-MEC), transfere para uma esfera externa à universidade (ao MEC, no caso, o polo ativo) o poder decisório sobre os termos do contrato que abrange largo espectro de atividades universitárias, como a pesquisa, a inovação, a internacionalização etc. (Art. 7). A alegação de que o contrato de desempenho é opcional, conforme é possível depreender do inteiro teor do projeto, não se sustenta, pois as instituições que não aderirem sequer poderão ter garantia de uso de suas receitas próprias, pois sem o referido “contrato de desempenho” as receitas próprias estão submetidas ao teto declinante de gastos e, na prática, grande parte das mesmas acabam nos cofres do clube dos bilionários que são os donos dos títulos que lastreiam os juros e serviço da dívida da União.
Entretanto, a adesão ao Future-Se 2 não assegura o uso autônomo das receitas próprias. Os recursos terão de ser aplicados a partir de cláusulas do contrato de desempenho que, como salientado, serão mais restritivas: nos termos do Projeto, o leitmotiv da universidade é refuncionalizado pela ideologia inovacionista. É verdade que a nova versão redefiniu a pueril proposição de que as universidades receberiam grandes somas de empresas ávidas por investimentos em inovação, mas insiste na crença fantasiosa de que as universidades são fatores indutores do ecossistema de inovação.
Cabe salientar que no “contrato de desempenho” o controle e avaliação de desempenho são instrumentos coercitivos – previstos no §8º do art. 37 da CF – de grande eficácia, pois este era o objetivo do Plano Diretor da Reforma do Estado. Assim, os seus parâmetros podem não se coadunar com a natureza das atividades acadêmicas (universidades, obviamente, não são empresas) (Art.7).
Conforme matéria jornalística, um dos indicadores seria a redução das despesas de pessoal (das zebras gordas?), o que somente seria possível com a interrupção de progressões e de concursos, ou mesmo pela redução de salários pretendida pela área econômica do governo Federal[2]. De fato, abre um precedente importante no item remuneração de pessoal, tal como na primeira versão do Future-se e no intento do governo Bolsonaro de promover uma abrangente reforma administrativa que poderia possibilitar a redução dos salários dos servidores[3].
Uma preocupação adicional é que, se é certo que a Lei 8.666/1993 não é adequada ao cotidiano da gestão da universidade, simplesmente interditar a sua aplicação sem nova lei específica (§2, Art.9) para as universidades e IFET colocará as instituições em grande fragilidade institucional.
O Projeto segue a prática usual de afirmar que ‘a adesão é livre, mas tem que aderir’ (Art. 6). Os ditos benefícios especiais compreendem o recebimento de receitas do Fundo Soberano do Conhecimento e do Fundo Patrimonial do Future-Se, recursos estes destinados às atividades de empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e internacionalização (Art. 8).
Cabe uma preocupação: o Fundo Soberano do Conhecimento pode ser resultante da incorporação da FINEP e do CNPq que, nesse caso, deixariam de existir, impondo um gravíssimo e perigoso retrocesso para a ciência e a tecnologia, afetando brutalmente as universidades e os Institutos. Além disso, o tal fundo pode deslocar quase que inteiramente o FNDCT para o fomento à inovação, em detrimento da pesquisa básica e aplicada elaborada no gozo da autonomia universitária, em conformidade com os problemas lógicos, epistemológicos e os grandes problemas nacionais e dos povos. É importante salientar que este Fundo será realizado no ambiente da Bolsa de Valores, regido pelas regras da Comissão de Valores Mobiliários – CVM (Art.30). Isso o situa na dinâmica financeira. Os seus objetivos e missões deverão ser calibrados e congruentes com essa dinâmica, prevendo, inclusive, alienação de patrimônio.
Os incentivos previstos no Future-Se 2 poderiam ser atribuídos a todas as IF sem qualquer “contrato de desempenho”, tendo em vista a prerrogativa de autonomia que, no caso das universidades, já é ampla, diferente das autarquias e fundações públicas não nomeadas como autônomas pela Constituição e pela legislação conexa. De fato, as finalidades estabelecidas pelo Art. 1, excetuando a mal definida visão empreendedora, são corolários da prerrogativa da autonomia universitária e já deveriam ser uma prática cotidiana. Se houvesse real compromisso com as instituições, bastaria remover os obstáculos heterônomos à autonomia de gestão financeira e patrimonial das mesmas. O propósito, como é possível depreender da leitura do inteiro teor do Projeto, é outro: o enredamento das IF nas teias dos contratos de gestão, embora, aqui, relexicalizado como “contrato de desempenho”. Mesmo a aplicação de recursos do fundo em assistência estudantil obedece à dinâmica da financeirização e à ideologia inovacionista (Art. 32). A destinação de dividendos deste fundo segue mirando as Organizações Sociais (OS) (Parágrafo 1, Art.32).
O Future-Se 2 se rende a evidência de que as fundações de apoio realizam a interveniência de grande número de projetos das universidades (Art.11), porém reafirma o apreço pelo modelo das Organizações Sociais (Art. 11) que, entretanto, deixaria de servir como âncora do Future-se, visto que o contrato matriz seria entre a IF e o MEC.
Na nova elaboração, o contrato da OS será firmado diretamente com as instituições, observado o Art. 15A da Lei de Inovação Tecnológica. Também os Núcleos de Inovação Tecnológica – NIT poderão ser qualificados como OS, nos termos da Lei 9.637/1998, o que está em harmonia com a proposição do contrato de gestão previsto no referido parágrafo 8 do art. 37 da CF.
A indução do Fundo Patrimonial do Future-Se 2 é explicitada no Paragrafo 1, Artigo 28, que estabelece que os recursos próprios podem ser destinados ao referido fundo, sem ingresso na Conta Única do Tesouro Nacional, viabilizando, desse modo, que os recursos próprios não sejam apropriados indevidamente em virtude da EC 95/2016.
Esse é o ponto mais sensível, pois o modelo do Future-se 2 condiciona o acesso aos tais fundos ao contrato de desempenho (leia-se, ao contrato de gestão) acima referido. É uma expressão do escasso republicanismo. O Fundo do MEC, a exemplo do que deveria ser o FNDCT como fundo financeiro, deveria ser de acesso geral, com contas específicas por instituição, para todas as IF, sem a necessidade de um contrato de gestão heterônomo.
Os “submarinos” não foram totalmente removidos. O reconhecimento de diplomas estrangeiros, no Future-Se 2, poderá ser realizado por universidades privadas (Art.37), o que exige alteração da LDB e promove um salto gigantesco na ampliação da mercantilização da educação superior. É reconhecido o fato de apenas um grupo reduzido de universidades privadas possui pesquisa institucionalizada. Com a modificação da LDB, basta ter um curso do mesmo nível e área equivalente, o que, com a flexibilização, inclusive a possibilidade de mestrados e doutorados a distância, assegurará nova plataforma para o comércio transfronteiriço de educação superior. O mesmo artigo flexibiliza a exigência de doutorado por meio da popularização do notório saber. O Projeto não altera o custo da energia e tampouco impede que as corporações do setor de energia interditem projetos de melhoria da eficiência energética em virtude de posicionamento da empresa, interessadas, no caso, em impedir a melhoria da eficiência para que as contas sigam em patamares elevados, como é o caso da conta de energia de grande parte das IF.
Conclusão
Embora as presentes pontuações sejam preliminares, é possível concluir que alguns aspectos negativos foram retirados do Future-Se 2, mas isso não alterou o seu DNA neoliberal e seus propósitos heterônomos: os contratos de gestão. É da natureza da política anticientífica, antissecularista e fundamentalista em curso no país tentar criar constrangimentos orçamentários objetivando a refuncionalização das instituições, justamente objetivando apagar a herança iluminista das instituições[4]. O desafio da defesa da universidade pública permanece como axial. Os efeitos da EC 95/2016 servirão de tacão para tentar “convencer” os conselhos superiores das instituições de que é preciso dobrar a coluna vertebral da autonomia universitária. Seguem desconhecendo a história e a força da dignidade das universidades e institutos de educação tecnológica federais. Prevalecerá a defesa da autonomia universitária como fundamento da relevância social da universidade crítica!
O texto de Roberto Leher foi originalmente publicado no site Carta Maior, no dia 21 de outubro de 2019