Além de vago e pouco transparente, o programa não resolve o problema imediato da falta de verbasd+ desresponsabiliza o poder público e joga na educação a responsabilidade pelos problemas econômicos
O programa Future-se, apresentado pelo Ministério da Educação (MEC), na última quarta-feira (17), propõe a reestruturação do financiamento do ensino superior público. A proposta amplia a participação de verbas privadas no orçamento universitário e está aberta à consulta pública até dia 15 de agosto.
Para analisar e entender os impactos do programa, o jornalista Rodrigo Ratier, blogueiro do portal UOL, consultou dois dos principais especialistas brasileiros no assunto: Marina Avelar, pesquisadora associada do grupo Norrag, do Graduate Institute of Internacional and Development Studies, na Suíçad+ e Salomão Ximenes, professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC).
A impressão inicial de ambos sobre o conjunto de medidas é negativa. Para os entrevistados, o projeto é vago e pouco transparented+ não resolve o problema imediato da falta de verbad+ acena com recursos incertos e sem liquidezd+ desresponsabiliza o poder público pelo financiamento do ensino superior públicod+ joga na educação a responsabilidade pela solução de problemas econômicosd+ ameaça ampliar desigualdades entre universidades, cursos e áreasd+ e não contempla a expansão da rede.
Veja abaixo as opiniões:
“Se fosse resumir, diria que o Future-se soa como uma tentativa de vender que se está melhorando o financiamento da educação, quando, na verdade, as universidades serão deixadas na mão”, afirma Marina. Ela se refere ao primeiro pilar da proposta: um fundo privado, no valor de R$ 102 bilhões, apresentado como fonte de recursos para as instituições públicas. A especialista aponta que os chamados mecanismos inovadores de financiamento precisam ser fontes adicionais de recurso, o que não é o caso. “Isso é consenso na literatura: financiamento inovador significa trazer dinheiro novo para novas iniciativas”.
“Como o teto de gastos segue ativo e não houve menção ao fim do contingenciamento de verba, esse dinheiro seria usado para pagar o dia a dia. Na prática, ocorreria uma substituição do recurso público”, diz Marina, ressalvando que sua opinião não representa, necessariamente, a das instituições com que trabalha.
Outra dificuldade seria o tempo de uso do recurso. Segundo o MEC, boa parte do fundo — 50 dos 102 bilhões — viria da venda de terrenos e imóveis da União. Ou seja, não há liquidez. “Além disso, um fundo tem tempo de maturação: é preciso primeiro capitalizar para depois retirar recursos. Essa é uma proposta que não vejo como consolidada”, afirma Salomão.
Os dois especialistas concordam que não se trata de solução para o subfinanciamento atual. “Com o contingenciamento, o funcionamento das universidades está ameaçado desde agora. Elas precisam de dinheiro para eletricidade já. A proposta não mexe nisso”, observa Marina.
Uma segunda novidade é a possibilidade de que a gestão das universidades seja feita pelas chamadas organizações sociais (OS), entidades privadas sem fins lucrativos que recebem subvenção do governo para prestarem serviços. “O que está se propondo é um modelo misto de administração, coerente com um projeto neoliberal nascido ainda no governo FHC, nos anos 1990. A parcela que ficaria a cargo das OS não está clara. É preciso esclarecer o limite da atuação”, diz Salomão.
Marina enxerga na medida uma modalidade de privatização. “A propriedade segue pública, mas a gestão ou a execução de serviços passa para a iniciativa privada”. A alegação de que o modelo traria mais eficiência é controversa. Salomão afirma que há poucas experiências no campo da educação — as parcerias público-privadas são mais comuns na cultura e na saúde. “São conhecidos os relatos de corrupção e improbidade administrativa em hospitais geridos por OS”, exemplifica Marina. “Também vejo problemas na questão da transparência: uma OS não precisa prestar contas como uma autarquia”.
O terceiro ponto, destacado diversas vezes ao logo da apresentação do MEC, é o foco em inovação e empreendedorismo. Para Salomão, trata-se de uma proposta de liberalização geral para venda de serviços e força de trabalho intelectual. “Cria-se um conjunto de incentivos para que os docentes se dediquem muito mais a produzir para o mercado do que para o setor público. Isso preocupa pois muda completamente a dinâmica das universidades, da agenda de pesquisa e desenvolvimento e do tempo dedicado ao ensino, pesquisa e extensão. Vejo um desvirtuamento dos papéis de formação e de pesquisa de base.” Outro complicador é que, como nem todo o conhecimento é “vendável”, a tendência é de que se ampliem as desigualdades entre universidades, entre campos do saber e mesmo entre cursos. As áreas de humanas seriam as grandes atingidas. “Quem vai querer financiar estudo de desigualdade e racismo? É um tema bem coberto em literatura internacional: com PPPs, causas desse tipo perdem dinheiro”, diz Marina.
Os especialistas contestam, também, a ideia de que o ensino superior “rouba” dinheiro da educação básica. O mantra de que o problema não é recurso, mas gestão, apareceu na apresentação do MEC, mas é refutado pelas estatísticas educacionais: o gasto brasileiro por aluno no ensino superior é inferior à média dos países da OCDE, clube das nações desenvolvidas.
Quando se pegam as instituições que teriam inspirado o Future-se, a disparidade aumenta. “MIT e Stanford investem cerca de 600 mil reais anuais em cada estudante. USP e Unicamp ficam na casa dos 53 mil. Mesmo que se considerem as diferenças no poder de compra, as diferenças são consideráveis”, aponta Marina. Para Salomão, é também equivocado tomar como exemplo instituições como Harvard — pequenas, em comparação com as maiores federais brasileiras. “Um exemplo melhor seria Berkeley, que é maior e tem o grosso de seu financiamento vindo do setor público. A experiência de países ricos mostra que apenas uma pequena fração das universidades consegue funcionar com modelos semelhantes ao proposto pelo MEC”.
Leia as opiniões na íntegra: UOL – Em Desconstrução
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C.G./L.L.