Ex-presidente da Capes, Abílio Baeta Neves afirmou em entrevista à BBC Brasil que vê com estranhamento o fato de a atual gestão da Capes aceitar sem nenhum questionamento o corte proposto pelo governo
Em entrevista à BBC Brasil, o ex-presidente da Capes Abílio Baeta Neves afirma que os recentes bloqueios de bolsas de mestrado e doutorado significam forte prejuízo para a pós-graduação, e isso refletirá em todo o sistema de pesquisa no país. Ele afirma os momentos de crise na instituição não são incomuns, porém estranha o fato de que a Capes e o MEC aceitem o bloqueio sem nenhuma resistência. O atual presidente da Capes, Anderson Ribeiro Correia, relativizou o bloqueio, afirmando que apenas bolsas ociosas foram bloqueadas, o que representaria 2% do total investido pela agência.
O critério da ociosidade é controverso, já que as bolsas estavam em período de transição e seriam disponibilizadas no sistema da Capes em maio. Baeta Neves explica que o fluxo de bolsas é constante à medida que mestrandos e doutorandos concluem os seus trabalhos, beneficiando os próximos estudantes na fila, e assim permitindo a continuidade de projetos de pesquisa em programas de pós no país.
Neves presidiu a Capes durante os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, também ao longo do governo de Michel Temer e hoje é assessor da reitoria da PUC de Porto Alegre. “É comum que as contas públicas não batam com o que a gente espera”, afirma. “O que é mais raro é não defender o orçamento, como se vê na reação do MEC e da Capes. É aceitar o corte, o contingenciamento, como se fosse natural e absolutamente absorvível, sem consequências para o sistema.” Leia abaixo os trechos da entrevista à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Qual é o impacto da suspensão das bolsas?
Abílio Baeta Neves – O impacto é imediato. Se você suspende a concessão de bolsas, você prejudica imediatamente o sistema de pós-graduação.
É preciso fazer uma distinção. Não é a Capes que concede as bolsas (de) pós. Ela destina cotas às universidades, com base nas quais as universidades organizam a dinâmica de sua pós-graduação. As cotas não são preenchidas apenas uma vez ao ano. Há um fluxo contínuo de mestrado e doutorado, uma dinâmica contínua de ingressos e de benefício através das bolsas de mestrado e doutorado, e isso é muito importante.
Se um curso recebe informação de que não pode repor suas bolsas, isso provavelmente vai ter um impacto para vários estudantes que estavam na expectativa. Por exemplo, um grupo de bolsistas concluiu seus estudos em março, mas agora bloquearam os recursos da universidade e o curso não pode escolher outros. Alguns estudantes vão ter que desistir, outros vão ter que espaçar mais a sua formação.
O sistema vive dessa capacidade de reposição. Nesse sentido, já há um prejuízo para os programas. E também com relação à confiança no sistema todo de fomento. Se os jovens começarem a perceber que a formação com bolsa começa ficar muito incerta, isso faz com que comecem a repensar seus projetos. Se aqui esse caminho começa a se fechar, tenho de pensar em outras oportunidades.
O impacto é verdadeiro e não é daqui a pouco, é logo, com forte prejuízo para os programas e para a dinâmica da pós-graduação.
BBC News Brasil – Que efeitos isso pode trazer para a pesquisa científica no Brasil?
Baeta Neves – Toda as áreas são cobertas pela pós-graduação, por mestrandos e doutorandos, que sustentam a atividade de pesquisa no país. Os projetos de bolsistas alimentam projetos de professores, alimentam grandes projetos de pesquisa. Mexer com a pós é mexer com o sistema todo.
As engenharias, por exemplo, com enorme impacto para processo de desenvolvimento tecnológico, que afeta positivamente a nossa economia. A área de saúde, que tem inúmeros exemplos de dissertações e teses fundamentais nos mais variados campos, como (o estudo do vírus causador da) zika, produzindo estudos de referência. Ou na área química, vemos que a Petrobras continua recorrendo às universidades brasileiras, porque sabe que tem um repertório de pesquisas que podem ser muito importante para sua atividade.
BBC News Brasil – O governo Temer também ameaçou cortes pesados à verba da Capes quando o senhor presidia a instituição. Como esses cortes foram contidos?
Baeta Neves – Nos últimos dois anos, houve ameaças semelhantes de cortes na Capes. Em meados de 2018, se dizia que o orçamento tinha que ser bloqueado, inclusive para não ameaçar as perspectivas para esse ano. Bem. Não se fez esse corte. Inclusive o Conselho Superior da Capes escreveu uma carta, encaminhada ao ministro da Educação, sobre o impacto que os cortes teriam se fossem implementados.
É comum que as contas públicas não batam com o que a gente espera. Conhecemos isso de outros períodos. O que é mais raro é não defender o orçamento, como se vê na reação do MEC e da Capes. É aceitar o corte, o contingenciamento, como se fosse natural e absolutamente absorvível, sem consequências para o sistema.
Quando foi anunciado o primeiro bloqueio de orçamento no MEC, de mais de R$ 5 bilhões, o ministro (Abraham Weintraub) saiu falando coisas do tipo, “ah, tem muita balbúrdia, vamos cortar em instituições que têm balbúrdia”.
Nos últimos dias o MEC passou a falar que é contingenciamento e a levantar a possibilidade de rever (os cortes) se a reforma da Previdência passar, se a economia melhorar. Mas aceitar o bloqueio sem o mínimo de resistência é uma coisa muito estranha.
Brasil – Como o senhor vê os cortes em cursos de filosofia e ciências sociais defendidos pelo governo?
Baeta Neves – Isso é preocupante. Não faz o menor sentido. Mesmo que se diga que é preciso investir em áreas sensíveis para o desenvolvimento do país, é uma insanidade desconhecer que as humanas são sensíveis para o desenvolvimento do país. Que dependemos do conhecimento produzido nas humanidades. É uma bobagem. São muitos exemplos. A questão da segurança, das migrações, da mobilidade urbana, do envelhecimento da população – como é que eu resolvo isso sem nada de sociologia? O problema da democracia no país não precisa de ciências humanas?
BBC News Brasil – O senhor vê um cunho ideológico motivando essas ações?
Baeta Neves – Há um exagero muito grande. Parece uma intenção de produzir um cenário ideológico reverso nas universidades. Acusa-se que universidades eram muito PT, muito de esquerda, e agora têm que ser conservadoras. Esse pêndulo que vai de 8 a 80 não é bom para as universidades. A universidade deve poder gozar de autonomia e ser responsável pela forma como organiza as atividades acadêmicas, de pesquisa e de formação de recursos humanos.
Isso vem no bojo de um conjunto de críticas sobre universidade pública e ensino superior, como se tudo estivesse errado. Como se tudo tivesse que mudar, mas sem dizer em que direção essa mudança deve ocorrer, qual é o projeto. Acho que temos que discutir seriamente uma nova política na universidade. Nem tudo está maravilhoso, as universidades precisam de uma reforma.
Mas não há um debate consistente sobre isso, apenas críticas soltas, sem uma reflexão sistemática sobre as universidades e sua relação com o desenvolvimento do país. Não pode ser uma nova política que simplesmente se apegue a uma crítica ideológica sobre esquerdismo nas instituições. O ensino superior é muito mais do que essa discussão. A sociedade precisa muito mais da universidade do que ela deixar de ser de esquerda e virar de direita.
BBC News Brasil – Há quem veja nos cortes uma estratégia de minar aos poucos a universidade pública. O senhor vê assim?
Abílio Baeta Neves – Eu não acho isso ainda. Ainda não tenho elementos para dizer que está em curso um desmonte deliberado. Acho que é falta de conhecimento mesmo. O governo precisa entender melhor do que se trata. As pessoas não sabem com o que estão lidando. Inclusive números não são apresentados corretamente.
Acho que estão relativizando a importância do ensino superior com essa fixação na história do esquerdismo nas universidades. Isso prejudica a compreensão do papel mais amplo, mais importante e mais sério que cumpre para o desenvolvimento e para a sociedade.
Mas, neste momento, é preciso cuidar do orçamento, e para que esses cortes não façam desmoronar o que temos, não comprometam essencialmente a vida nas universidades públicas e a formação em recursos humanos. Senão, daqui a pouco, vamos ver que nosso desenvolvimento está sendo travado porque não temos recursos humanos para encaminhar alternativas.
BBC News Brasil – Como o senhor se sente vendo esse contingenciamento hoje?
Baeta Neves – Já passamos por tantas situações que não foram as mais desejáveis. Eu diria que o momento repete outras situações que foram vistas quase como uma ameaça ao sistema. Eu nem diria que esse é o momento pior.
É preciso lembrar do governo Collor, que extinguiu a Capes quando entrou. Depois, foi preciso fazer um trabalho muito grande em seu próprio governo para recriar a agência. Houve outros momentos de bloqueio de recursos muito fortes. No primeiro ano do segundo governo Dilma, houve um corte da ordem de 75% no orçamento destinado às atividades de pós-graduação que eram mantidas pela Capes.
Crises e bloqueios de orçamento a gente conhece. Mas a gente também conhece o diálogo entre universidades, pró-reitores, coordenação de cursos com a Capes para que se busque soluções, e isso é importante estabelecer imediatamente.
Leia mais em: BBC Brasil
M.B./L.L.