Uma análise objetiva do 31 de Março de 1964

A possibilidade de tratar eventos históricos de forma objetiva tal qual as “hard sciences” fazem ao estudar os fenômenos da natureza nos leva a procurar na área da história o que se constituiria o análogo científico do “experimento”. No caso, o “experimento” subjacente ao fato histórico será tomado como o relato testemunhal dos que viveram o evento e que ficou registrado nos jornais e revistas da época.

Nesta perspectiva, é bastante apropriado ler o que escreviam os jornalistas que cobriam a política no período em análise. Cito aqui, pela extensão de sua obra como jornalista político, os escritos de Carlos Castello Branco que eram publicados no então Jornal do Brasil e me limitarei a trechos de dois textos publicados nos dias 5 e 7 de abril de 1964.

“O receio de que a Revolução vitoriosa esgote seus objetivos na simples repressão policial  e adote como conteúdo o anticomunismo “à outrance” parece conduzir a ação de chefes civis e militares do movimento no sentido de preservar o instinto legalista e o sentimento democrático que os moveu na batalha para a remoção do Governo do Sr. João Goulart.

A decidida reação do Congresso à cassação pura e simples de mandatos parlamentares encontrou sua expressão numa reunião, ontem realizada, do Sr. Moura Andrade com os líderes da Câmara e do Senado, que afirmaram a necessidade de restaurar a intangibilidade da Constituição e de enquadrar nos processos legais as operações de eliminação do dispositivo subversivo que teria sido montado à sombra do Governo deposto.””

“Parece estar se impondo sobre a corrente revolucionária exaltada a corrente moderada, que entende e proclama que a Revoluçãofoi feita contra o comunismo e não contra o Congresso e as liberdades públicas. É esta, de resto, a tendência normal dos movimentos vitoriosos que, cumprida sua missão, procuram-se acomodar-se à ordem.

A Revolução, no entanto, antes de se dissolver nos quadros institucionais vigentes, pretende afirmar-se através de um ato de força que cumpra, em si mesmo, os principais objetivos definidos pelos chefes revolucionários.

Esse ato de força é a proclamação, outorga ou que outro nome técnico tenha, de disposições institucionais, que permitam ao Governo triunfante praticar a cirurgia que os órgãos do ordenamento normal das instituições se recusariam a fazer. O Congresso, como se sabe, não votará cassação de mandatos nem dará leis de suspensão de direitos. As Forças Armadas, em conseqüência, teriam decidido assumir a responsabilidade do expurgo, proclamando o Ato  Institucional ou Adicional que lhes dará poderes de cassar mandatos, suspender direitos políticos e as garantias do funcionalismo civil e militar.

Ao concordarem nas linhas gerais desse ato, tiveram os comandos militares, que divergiam no correr do processo, de se compor em torno de termos de execução. Assim é que se pretendeu atingir a vitaliciedade dos membros da Magistratura, com vistas à situação de dois ministros do Supremo e de outros juízes, afastando-se a idéia. Quanto ao Congresso, concordou-se em suprimir os mandatos de “meia-dúzia de deputados mais marcados”, rejeitando-se a idéia do expurgo de trinta ou quarenta pretendida pelos exaltados. A suspensão de direitos dos servidores públicos visa a possibilitar a eliminação dos quadros administrativos e das fileiras das forças armadas dos elementos declarados comunistas.

Teria sido objeto de entendimento pacífico que a eleição e posse do novo Presidente da República, a ocorrer amanhã, quarta-feira, significará o sinal de retorno à normalidade institucional, ficando superadas as disposições institucionais.

Os dois trechos citados acima permitem entender alguns aspectos importantes do movimento contra-revolucionário deflagrado em 31 de Março de 1964.

1. A contra-revolução foi um movimento amplo que não serviu aos interesses de uma pessoa ou de um pequeno grupo apoiador.

De fato, contrariamente ao golpe do Estado-Novo em 1937, que serviu para consolidar o poder que Vargas já exercia desde a crise de 1930, a contra-revolução de 1964 afastou João Goulart do cargo para suprimir a subversão comunista promovida de dentro do próprio governo. De certa forma, a contra-revolução impediu que João Goulart junto com seu sogro Brizola e comunistas da pior espécie como Luís Carlos Prestes viessem a fechar o Congresso, algo que o caudilho Brizola repetiu várias vezes durante o comício da Central do Brasil. Da análise do texto da coluna do Castello fica claro que não havia nenhuma liderança pronta para assumir a vacância do cargo deixado pelo afastamento de Goulart e que qualquer indicação a presidência seria submetida a apreciação do Congresso. Assim, nenhum nome estava definido e isto torna evidente o caráter não-personalista da contra-revolução, isto é, ela não foi encomendada por alguns poucos conspiradores, mas representou o ponto de convergência de amplos setores da sociedade civil que se opunham ao governo caótico de João Goulart.

2. Havia um caráter legalista na contra-revolução.

Isso fica explícito do texto analisado pela manutenção do funcionamento do Congresso. Mais uma vez, é elucidativo comparar o 31 de Março de 1964 com o início da ditadura do Estado-Novo. Em 1937, Vargas imediatamente cassa os partidos políticos, põe na ilegalidade, um fenomenal movimento de massas de direita, o integralismo, que desde sua fundação nos anos 30 com a Ação Integralista Brasileira confrontou o comunismo servindo de barreira contra suas aspirações ditatoriais, como é característico de qualquer “aventura” comunista. A ditadura de Vargas também foi notória em violar direitos fundamentais de cidadãos comuns (uma ida aqui perto em Jaraguá do Sul, por exemplo, ainda guarda memórias de famílias que relatam a perseguição que seus avôs e avós sofreram por serem de descendência alemã, ou por terem sido integralistas, já que o integralismo tinha uma forte presente no Sul do Brasil). Mais uma vez, do texto da coluna do Castello vemos que em 31 de Março de 1964 o Congresso não foi fechado, nem cassado o registro de partidos políticos. Do ponto de vista individual, as medidas eram dirigidas apenas àqueles que tinham alguma participação no esquema subversivo, e lembremos que esta foi a razão da contra-revolução que, como diz o texto, deveria se dissolver nos quadros institucionais vigentes.

Outros textos publicados na coluna do Castello permitem investigar exaustivamente aspectos costumeiramente negligenciados associados ao 31 de Março de 1964 e que são absolutamente necessários para compreender seus desdobramentos.  O caráter não muito extenso desses textos de análise da conjuntura política favorecem a natureza documental do que foi escrito, reduzindo ou eliminando consideravelmente a subjetividade e cedendo espaço a algo muito próximo de uma neutralidade. Este esforço serve para embasar uma visão mais acurada do que foi o evento histórico, algo um tanto raro em uma historiografia enviesada que permite que o historiador analise o evento tomando um recorte conveniente, mas não representativo do evento e, assim, desenvolva uma análise que se mostra serviçal de um projeto ideológico, mas que não se submete a nenhuma consistência lógica que deriva do relato documental deixado.

Obs.: Para mais informações sobre o 31 de Março de 1964, pode ser interessante assistir também o documentário “1964 – O Brasil entre armas e livros”, produzido pelo Brasil Paralelo

https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIgEfeature=share

Obs.:Outros textos analisando a contra-revolução de 31 de Março poderão ser acessados em

http://mtm.ufsc.br/~mcarvalho/31deMarode1964/

que ficará disponível a qualquer um interessado no estudo sobre a contra-revolução de 31 de Março de 1964.