No dia 22 de fevereiro deste ano, a estudante de Doutorado do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), Vera Fátima Gasparetto, defendeu a tese intitulada “Corredor de Saberes: vavasati vatinhenha (mulheres heroínas) e redes de mulheres e feministas em Moçambique”. O trabalho circula num momento em que Moçambique vive os desafios da reconstrução das vidas das pessoas após as consequências do ciclone IDAI. Também estão sendo organizadas atividades preparatórias na UFSC para a participação no 14º Congresso Mundos de Mulheres, que será realizado em Maputo em setembro de 2020.
A tese intitulada “Corredor de Saberes: vavasati vatinhenha (mulheres heroínas) e redes de mulheres e feministas em Moçambique” é resultado da pesquisa de campo realizada junto às organizações de mulheres e feministas em Moçambique, quando pude observar que as mulheres são protagonistas de uma nova luta pela África, por um outro modelo de desenvolvimento e por uma outra academia, que considere seus saberes e suas experiências.
No trabalho identificamos e descrevemos metodologias, estratégias de luta política e ações de mobilização pública que os movimentos de mulheres e feministas ligadas à rede Fórum Mulher, em Moçambique, utilizam para negociar, tensionar e garantir a implementação de políticas públicas que atendam as demandas das mulheres e LGBTs, incluindo o direito ao corpo, à cidade, ao trabalho, à terra e ao reconhecimento da sua contribuição social e econômica, tanto no espaço público como privado (GASPARETTO, 2019).
O problema que estimulou a realização desta pesquisa é duplo: a persistência por um lado, do desconhecimento da produção intelectual feminista e de gênero africana na América Latina no geral e no Brasil, e do outro lado, de uma visão ocidental ainda dominante das mulheres africanas como vítimas e não como sujeitos de sua própria história, que desenvolvem em seus próprios contextos e condições históricas estratégias de resistência às várias formas de opressão e discriminação.
Com a pesquisa contribuímos para a circulação de uma memória e história da luta das mulheres em Moçambique: essas mulheres como fontes históricas, com suas próprias e múltiplas vozes e pertencimentos, que desafiam a herança colonial, a herança das guerras, as catástrofes naturais – como a ocorrida no centro do país recentemente – e lutam no cotidiano por melhores condições de vida. Suas ações auxiliam na “decolonização” do pensamento, do ser, do poder, do saber (QUIJANO, 2002) e do gênero (LUGONES, 2008), contribuindo para que os processos de existência e resistência no âmbito global sejam movidos pela utopia de uma nova vida.
Há uma visão predominante sobre África que é preciso desconstruir, enquanto lugar de crises, de catástrofes e conflitos, que contribuí para a reprodução estereotipada de todo um continente e seus habitantes, que por sua vez, produz a invisibilidade e desconhecimento das produções teóricas, neste caso particular dos feminismos e estudos de gênero. É necessário refletir sobre os motivos que fazem com que muitas vezes nós acadêmicas/os deixemos de falar de um continente inteiro, para o qual olhamos muitas vezes como um lugar “vazio”, ou um “não lugar”. Ainda que a circulação da produção dos feminismos africanos seja rara na América Latina, como feministas não podemos reproduzir violências epistêmicas e precisamos nos desafiar a colocar no mapa aquilo que conhecemos ou reconhecer que não temos acesso às produções das pesquisadoras do continente.
Vivemos na trajetória acadêmica vários episódios que revelam a “colonização do feminismo”, mesmo quando tratamos de feminismos “decoloniais”. São situações que em parte tiram a potência, remetem à reflexão, pensando que nossas contradições são tão profundas que talvez não veremos mudanças a curto prazo. Mas por outro lado há neles uma força: a ausência proporcionou a fala, a complementaridade, a possibilidade de contar que há sim “feminismoS africanoS”, que há feminismo acadêmico e ativista, que há uma potência de mulheres naquele continente.
Esses episódios fortaleceram a necessidade de trafegar pelo “corredor de saberes” os conhecimentos produzidos em Moçambique e em África, de trazer sua potência epistêmica para este lado do Atlântico, no Brasil e na América Latina. Quebrar os estereótipos e preconceitos e conectar nossas forças físicas, energias espirituais e capacidades intelectuais para a transformação de realidades acadêmicas tão diversas e ao mesmo tempo tão similares. Entendo que falarmos em feminismos decoloniais significa também dialogar com a África, com o compromisso de desnaturalizar, desmistificar, deslocar, revelar os feminismos dissidentes, as mulheres heréticas e profanas que se conectam com suas ações políticas e produção de conhecimento, ainda que careçam de mais poder de circulação, o que estamos propondo no “corredor de saberes”.
Doutora pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar da UFSC