MÊS DA MULHER – Xadrez para eles, flores para elas: a produção de diferenças de gênero na decoração de interiores

Já que o mês de março é o mês de luta das mulheres, é bom lembrar que as materialidades que nos rodeiam estão implicadas na construção de assimetrias de gênero. Para discutir essa questão tomo como exemplo a decoração de interiores, apoiada em algumas reportagens veiculadas na revista Casa E Jardim durante os anos 1960. O que pretendo ressaltar são algumas das estratégias discursivas empregadas na naturalização de diferenças entre mulheres e homens, mediante a prescrição de tipos específicos de gostos, atividades e interesses. Sendo assim, as representações de gênero em Casa E Jardim podem ser entendidas como posições de sujeito prescritas para o público leitor, que, longe de serem o reflexo de uma suposta essência, precisam ser problematizadas[1].

Na ocasião do seu lançamento, em 1952, Casa E Jardim apresentou-se como um guia de consumo doméstico voltado para as classes médias numa época de urbanização e industrialização acelerada. A missão do periódico era, justamente, apresentar soluções capazes de conciliar a preservação dos valores tradicionais da família – esta última entendida a partir do modelo nuclear e heterossexual – com a modernização das moradias. Sua contribuição na intermediação de valores e comportamentos pode ser considerada como socialmente produtiva, engendrando interpelações e discursos que, uma vez negociados no cotidiano mediante processos de reificação ou resistência, participam constitutivamente na trama da vida social[2].

No período em tela, a revista trabalha com a noção de que a personalidade das pessoas está interligada aos ambientes que elas habitam. As propostas de decoração são estruturadas mediante a marcação de diferenças de gênero, operando no sentido de afirmá-las como antagônicas. Logo, o arranjo dos espaços domésticos serve como meio para a materialização de identidades de gênero. Por exemplo, na reportagem “Onde dormem as crianças”, publicada em março de 1966, as leitoras são aconselhadas a balizar as escolhas de decoração conforme o sexo, a idade, os hábitos e as preferências de cada criança. Contudo, a ênfase na observação dos aspectos particulares é perpassada por generalizações. Os traços de personalidade são interpretados a partir da clivagem masculino/feminino, cujas respectivas características são assumidas como universais. Sendo assim, “naturalmente que o quarto do garotinho em nada deve ser semelhante ao da menina.”[3]

Em uma outra matéria, agora sobre quartos para adolescentes, o texto apresenta a seguinte versão do que seriam as diferenças entre personalidades masculinas e femininas traduzidas nas estratégias de decoração: “Um quarto para rapaz precisa ser diagramado a proporcionar-lhe, também, um agradável ambiente de estudo. Móveis singelos, onde apenas a textura da madeira representa papel importante, e prateleiras para [os] livros, as miniaturas, as peças de coleção”[4]. Dispensando ornamentações além dos objetos de escolha pessoal que servem para personalizar o ambiente, o quarto masculino é apresentado como um espaço que deve traduzir equilíbrio entre repouso e estudo. Por outro lado,

 

“já a decoração do quarto da mocinha se presta a mil e uma fantasias Se os móveis são mais leves, leves também são os tecidos usados para as colchas e cortinas, que tanto podem ser lisas, ornadas de passamanaria, ou estampadas. Paredes em tons pastel ou alegremente desenhadas em fundos de papel criam a atmosfera própria para a adolescente que tem sonhos côr-de-rosa. Também ela tem suas preferências em matérias de detalhe: bebês rechonchudos – reminiscências da infância – bibelôs, um violão de estimação, flôres em buquês ou em gravuras emolduradas de dourado e vidros de perfume compõem o seu mundo de doce fantasia.”[5] 

Seguindo a mesma linha, a reportagem “Meu quarto, meu reino”, publicada em setembro de 1965, reforça a ideia de preferências diferentes na decoração de quartos de dormir. Segundo o texto, o homem imagina o dormitório como “um refúgio agradável, mobiliado com móveis severos e confortáveis, em côres discretas. Muitos livros, uma mesa de bom tamanho e uma poltrona onde possa ler em paz”. Já a mulher, por sua vez, prefere o ambiente “revestido de um pouco da frivolidade que lhe é inata, com côres garridas, flôres sempre frescas, móveis leves e elegantes”.[6]

Essa retórica das oposições também foi empregada no contraste entre duas matérias publicadas na edição de março de 1959. A primeira, intitulada “Aqui dorme um homem”, apresenta sugestões de decoração para quartos de dormir masculinos. Enquanto em uma das propostas são permitidos alguns “caprichos” como estatuetas e quadros, a outra é definida como espartana, onde predominam linhas retas e formas geométricas. A imagem masculina é definida como racional, organizada e metódica: “bem se pode imaginar que em ambos os dormitórios, as pilhas de camisas estão em cuidadosa ordem, as meias em filas alinhadas conforme suas côres, etc”.[7]

Na segunda matéria, por sua vez intitulada “Aqui dorme uma senhora”, o ambiente ilustrado “exprime tôda a feminilidade. É um clima, um estado de alma, um mundo secreto, do qual a senhora se orgulha e que deixa bater seu coração mais rápido”. No caso feminino, a emoção e o mundo subjetivo são ressaltados. Segundo o texto, neste quarto, até o trivial adquire um caráter amável e resplandecente. O efeito causado pela decoração que privilegia os motivos florais é “alegre como um jardim”.[8]

Além da diferenciação na escolha dos elementos decorativos, os ambientes da casa também são associados ao masculino ou ao feminino a partir das funções que lhes são destinadas. O escritório é recorrentemente classificado como um cômodo masculino. É lá que o dono da casa pode trabalhar com calma, “sem interrupções e barulhos, venham de que lado vierem”[9]. Na concepção da revista, a decoração desta peça “deve apresentar, ao lado de sua utilidade, um caráter pessoal, que faça o homem sentir-se bem e lhe transmita o fluido certo para resolver seus problemas”.[10] Em março de 1965, na reportagem “Só para homens” o escritório aparece como um espaço reservado para os maridos que querem trabalhar, dedicar-se a um passatempo, ou mesmo relaxar no ambiente doméstico. Diz o texto:

 

“Uma boa esposa sabe que seu marido, ao voltar do trabalho, precisa encontrar um ambiente confortável e acolhedor. Esta é a razão pela qual ela reserva um lugar especial para “êle”. Os homens adoram possuir um canto só para si mesmos, onde reinem sozinhos entre livros, discos e outros “hobbies’”. E a psicologia tem demonstrado o quanto isto é importante para a paz da família.”[11]

 

Contudo – e apesar de não relacionar este fato com a paz familiar – Casa E Jardim também considerou a possibilidade das donas de casa desejarem um “cantinho” só para elas.[12] A edição de abril de 1963 apresentou uma série de pequenos escritórios que podiam servir tanto aos chefes de família atarefados que necessitam dar continuidade ao trabalho na própria residência, quanto às donas de casa interessadas em um recanto particular destinado às atividades de costura, tricô ou outros trabalhos artísticos.[13] Em outubro de 1965 foi publicada outra reportagem sobre escritórios femininos, enfocando este ambiente como o lugar ideal para a administração da rotina doméstica. Ali, munidas de livros de receitas e da lista de fornecedores, as donas de casa estariam equipadas para planejar as compras semanais e o cardápio diário.[14] A reportagem “Aquêle canto difícil” indica soluções para conjugar o escritório do marido e o quarto de costura da esposa em um mesmo cômodo.[15] Como podemos observar, a idéia de escritório feminino nestes textos está ligada à rotina doméstica e à esfera privada, enquanto que o escritório masculino serve como um espaço de extensão ou refúgio da esfera pública dentro de casa.

Outro texto, publicado em abril de 1967, define ocupações diferenciadas para o mesmo cômodo da habitação, estabelecendo expectativas femininas e masculinas distintas. A reportagem discorre sobre as vantagens de uma sala íntima na casa ou apartamento. Durante o dia, poderia servir às mulheres como o lugar ideal tanto para costurar, tricotar, bordar e organizar o livro de receitas, quanto para ler, ver televisão ou conversar com as amigas. Mas de noite, “enquanto no resto da casa ainda há movimento, o homem encontra aí o seu mundo. Para ler os jornais, o trabalho intelectual, para ouvir música entre uma cerveja gelada e as notícias da TV é o melhor ambiente”.[16] Além de interesses divergentes, que contrastam habilidades manuais com intelectuais e distração com informação, fica implícita a responsabilidade exclusiva das mulheres com o trabalho doméstico e com o cuidado das crianças. Representações como essas ajudam a manter a oposição entre as esferas pública e privada e marcam a identificação do masculino e do feminino com cada uma delas.

A partir dos exemplos apresentados, podemos perceber que a lógica das oposições binárias organiza as concepções sobre as diferenças de gênero nas reportagens. As ditas personalidades femininas e masculinas aparecem contrastadas, onde o mundo privado das fantasias românticas e das tarefas domésticas é a antítese dos interesses objetivos voltados para a esfera pública, lugar do trabalho remunerado. Essas diferenças, apresentadas como “naturais” e “universais”, são materializadas tanto na decoração dos ambientes quanto nos usos que se fazem deles.

Vale indagar sobre a relevância que tais exemplos teriam no contexto contemporâneo. Por que evocá-los aqui? Em um primeiro momento, esses discursos soam ultrapassados e parecem já superados. Contudo, chamam a atenção para o papel dos artefatos, espaços e práticas cotidianas na constituição de clivagens de gênero. Tratam de forma explícita de aspectos que nem sempre são reconhecidos como merecedores de atenção nesses processos e cuja perspectiva histórica nos ajuda a vislumbrar. As reportagens de Casa E Jardim nos mostram que, uma vez implicadas na lógica binária da clivagem de gênero, as materialidades estão envolvidas na construção de visões normativas sobre feminilidades e masculinidades.

Segundo o antropólogo Daniel Miller, o entorno material adquire maior eficiência produtiva justamente porque não prestamos atenção quanto à sua participação na constituição dos conhecimentos que compartilhamos na vida sócial[17]. Por serem familiares e ubíquas, as materialidades “saem de foco” e deixam de ser consideradas como parte do processo de produção simbólica Em outras palavras, as configurações materiais não são neutras. Elas extrapolam a relação com a funcionalidade e medeiam as relações sociais, colocando em circulação concepções de mundo, hierarquias de valores e visões acerca das identidades e das diferenças.

Sendo assim, tranformações na direção de relações de gênero mais igualitárias passam também pela reconfiguração das dinâmicas que desenvolvemos com as materialidades que nos rodeiam.

 


[1]   SCOTT, Joan. Experiência. In: SILVA, Alcione Leite dad+ LAGO, Mara Coelho de Souza e RAMOS, Tânia Regina Oliveira (orgs.). Falas de Gênero: teorias, análises, leituras. Florianópolis: Mulheres, 1999, p. 21-55.
[2]   MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001.
[3]   Ver a reportagemOnde dormem as crianças”, publicada em Casa E Jardim, vol. 131, março de 1966, p. 20.
[4]   Ver a reportagem “Meu quarto, meu reino”, publicada em Casa E Jardim, vol. 141, outubro de 1966, p. 56.
[5]   Idem, p. 57.
[6]   Ver a reportagem “Êle e ela têm concepções diferentes para quartos de dormir”, publicada em Casa E Jardim, vol. 128, setembro de 1965, p. 33.
[7]   Ver a reportagem “Aqui dorme um homem”, publicada em Casa e Jardim, n. 50, março de 1959, p. 47.
[8]   Idem, p. 48.
[9]   Ver a reportagem “Aqui trabalha o dono da casa”, publicada em Casa e Jardim, n. 50, março de 1959, p. 25.
[10] Idem.
[11] Ver a reportagem “Só para homens”, publicada em Casa e Jardim, n. 122, março de 1965, p. 21 (aspas no original).
[12] Ver a reportagem “O cantinho dela”, publicada em Casa E Jardim, vol. 138, julho de 1966, p. 78-80.
[13] Ver a reportagem “Cantinho sagrado dentro do lar”, publicada em Casa e Jardim, n. 99, abril de 1963, p. 32-34.
[14] Ver a reportagem “Um cantinho em sua casa”, publicada em Casa E Jardim, vol. 129, outubro de 1965, p. 61.
[15] Ver a reportagem “Aquêle canto difícil”, publicada em Casa E Jardim, vol. 168, janeiro de 1969, p. 49-50.
[16] Ver a reporatagem “Sala íntima”, publicada em Casa E Jardim, vol. 147, abril de 1967, p. 37.
[17] MILER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas: Estudos Antropológicos Sobre a Cultura Material. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

 


Marinês Ribeiro dos Santos

Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE)

Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)