Myriam Aldana Vargas Santin
Já que o mês de março é o mês de luta das mulheres, é bom lembrar que a descriminalização do aborto é uma pauta importante na defesa dos direitos das mulheres, principalmente dos direitos reprodutivos. São muitas as organizações e movimentos de mulheres que estão engajadas nessa luta pela dignidade das mulheres, no entanto, neste breve texto pretendo destacar alguns dos argumentos que o grupo de Católicas pelo Direito de Decidir – CDD tem acumulado nas suas reflexões relativas esta luta.
O aborto é algo que se vive cotidianamente, que acontece em todas as classes sociais, mas as mais afetadas são as mulheres pobres e negras por terem menos condições de pagar por serviços médicos de qualidade. Muitas vezes na falta de métodos para evitar filhos o aborto é a única opção da mulher interromper a gravidez indesejada. Na classe média, o risco de morte das mulheres é menor, pois podem pagar preços mais altos pelos serviços, exigindo segurança e bom atendimento. Mas na classe médias as mulheres também estão sujeitas a criminalização. A gravidez indesejada acontece no nosso corpo e, para nós mulheres, não há outra forma de afastar-se desta gravidez a não ser pelo abortamento.
A decisão de interromper uma gravidez é um sério dilema ético no qual se consideram todos os fatores a favor e contra para trazer ao mundo uma criança, como as condições de vida da família, a situação do casal, a situação econômica, plano de vida entre outros fatores. Em algumas situações moralmente difíceis o melhor é atuar de acordo com o que consideramos sensato, razoável ou bom, ainda que não coincida com as normas e com as autoridades de nossa igreja o que implica atuar em liberdade de consciência.
Na tradição católica a liberdade de consciência tem um grande valor porque é a base da dignidade humana, somos pessoas com autoridade moral capazes de tomar decisões de acordo com o que consideramos melhor ou assumir em cada decisão nossa liberdade e nossa responsabilidade. As decisões tomadas em consciência são decisões moralmente válidas e devem ser respeitadas, este respeito implica no reconhecimento da autonomia da consciência individual e da autoridade moral que tem todas as pessoas para decidir livremente a melhor opção de acordo com suas circunstancias incluídas as decisões relacionadas com a sexualidade, a reprodução e o aborto.
Escutar nossa consciência não significa ignorar as normas de nossa igreja e ignorar as opiniões de outras pessoas, sempre será muito valioso tem conta as normas, escutar outras ideias, conhecer outras experiencias ou nos informarmos amplamente pois assim teremos presente distintos caminhos, formaremos uma opinião, um critério, poderemos meditar do fundo de nosso coração sobre o que é bom e razoável para nós. A voz da consciência é a voz de Deus, qualquer que seja sua concepção e imagem não pode haver condenação nem pecado quando as mulheres e adolescentes tomam decisões difíceis como a de interromper a gravidez quando seja em sua consciência convencidas de haver tomado a melhor decisão.
Estas reflexões expressas pelas Católicas tem embasamento teológico relativo ao principio do Probabilismo que é um dos argumentos da tradição cristã que se chama, “Onde há dúvida, há liberdade” e mais ainda quando se leva em conta que as questões relativas a moral sexual e ao comportamento reprodutivo nuca foram estabelecidos pela igreja católica como dogma, são passíveis de discussão e permitem a manifestação de divergências, o que sempre ocorreu na história da igreja. Não há, nem nunca houve unanimidade da condenação do aborto, ao contrário, um número expressivo de teólogas e teólogos recorrem a própria tradição religiosa cristã para defender a validade moral do recurso ao aborto que é o princípio do probabilismo.
Um outro ponto trazido neste debate, refere-se a ideia, fortemente arraigada nas mentes e corações, de que a maternidade seria a expressão máxima do respeito pela vida humana, enquanto o aborto seria sua negação mais absoluta. Entendo que é exatamente o reconhecimento da dignidade e da sacralidade da vida que coloca a exigência moral de tornar possível a interrupção de uma gravidez e o correlato respeito por essa decisão. Afirmar reprodução humana como escolha, como resultado de decisão tão livre quanto possível, colocando-a, ao mesmo tempo no campo dos direitos – direitos produtivos – permite-nos cruzar o campo político da cidadania com o campo da ética da moral.
As características específicas do poder reprodutivo humano associam-no, imediatamente, à anticoncepção e a possibilidade da interrupção da gravidez, do aborto. Esses termos tem sido conotados, historicamente, de forma negativa. Parecem indicar a negação do desejo de conceber novas vidas humanas. Mas podemos entende-los, ao contrário, como referidos afirmação do valor da vida, do respeito por ela, de tal forma que a continuidade de uma gravidez não signifique apenas a aceitação de uma contingência biológica, mas a gestação amorosa de uma nova pessoa.
A gravidez humana é uma experiência sui gêneris. Supõe reciprocidade, recriação de desejos e não apenas a satisfação de necessidades sociais e biológicas. Podemos dizer que nenhuma uma sociedade é moralmente adequada se não se organiza para propiciar a existência e a expansão real das possibilidades da escola procriativa.
Seria não só extremamente injusto, mas também desumano e mesmo imoral, exigir das mulheres que ela se façam mães simplesmente porque são dotadas da possibilidade biológica de gestar. A decisão por um aborto pode ser tão moralmente aceitável como aquela de manter a gravidez.
Moral, em uma sociedade, é reconhecer as mulheres como agentes morais de pleno direito, com capacidade de escolhe a eticamente, segundo critérios socialmente aceitável como justos. Imoral é que outros – seja o Estado, seja um grupo religioso, seja uma igreja – decidam sobre o que as mulheres podem ou não fazer de seus corpos, de sua capacidade reprodutiva.
A legalização do aborto traduz uma ruptura ideológica e política fundamental no pensamento, na lógica e na prática política e social e m relação ao conservadorismo moral que confina as mulheres no único papel de mães e esposas, degradando a maternidade, porque a entende como destino biológico e não como escolha ética e questão de direito.
Outra consideração importante sobre esta temática é a necessária laicidade do Estado, para a realização plena dos direitos de cidadania incluindo-se o direito ao aborto. Um Estado confessional ou que legisla segundo princípios religiosos pauta-se por uma particularidade: deixa de representar a totalidade da nação. Um Estado laico não é contra a religião, mas, é, antes, condição necessária para a liberdade e a diversidade religiosa. É também a condição necessária para a afirmação pessoal e pública de pessoas e grupos sem religião. Essa afirmação em nada fere nossas adesões religiosas individuais.
Para concluir, trago as palavras do moralista católico Paul Ladrière (1984), para quem a penalização do aborto se constitui em uma injustiça e imoralidade. Ele diz:
Em conclusão, tendo em conta, como vimos, a dificuldade para afirmar que o aborto é um ato culpável e criminoso, porque existem infinitas circunstâncias que diminuem a responsabilidade ou eximem totalmente dela, seguir falando indiscriminadamente do aborto como crime e de quem o leva a cabo como criminosas (os) é demagógico, injusto e imoral. E será infinitamente mais imoral ainda pedir que se castigue toda pessoa que realize um aborto. […] Uma ética que pretenda ser para todos (e não somente para um grupo religioso) estará geralmente obrigada a optar por suspender o juízo diante do aborto, quer dizer, deixar a decisão à autonomia da pessoa (e este é outro princípio sine qua non da ética).
Finalizo com pensamento da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, essa frente nacional organizada por todas as articulações de movimentos de mulheres de diferentes organizações da sociedade civil que afirma: “A Autodeterminação reprodutiva das mulheres, maternidade livre e legalização do aborto. Nenhuma mulher deve ser impedida de ser mãe, nenhuma mulher deve ser obrigada a ser mãe. Nenhuma mulher deve ser presa, humilhada ou maltratada por ter feito um aborto. Aborto legal e seguro: A mulher decide, o Estado garante e a sociedade respeita.”