Já que o mês de março é o mês de luta das mulheres, é bom lembrar que mesmo o futebol sendo o esporte mais popular no Brasil, só a partir do final dos anos 1970 as mulheres tiveram permissão legal para praticá-lo. Não se pode falar de Futebol Feminino no Brasil sem lembrar esses anos em que esteve proibido às brasileiras. Trazemos isso porque todo o imaginário construído em torno das futebolistas no país foi fundamentado a partir de uma lógica que separou durante anos mulheres e futebol. “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”, assim instituiu o Artigo 54 do Decreto-Lei que criou o Conselho Nacional de Desporto (CND) em 1941.
A revogação da proibição só veio em 1979 e a regulamentação – ou a anistia – da categoria, em 1983. Anistia advém do latim amnestia que traz na semântica a ideia de perdão, um perdão coletivo. Mas qual teria sido o fato punível associado ao Futebol Feminino? De acordo com os discursos higienistas da época, praticar atividades esportivas que concentrassem características consideradas viris e que, portanto, iriam contra a natureza do corpo de mulher. Voltar-se contra a natureza, é voltar-se contra a maternidade, contra o sagrado. A proibição à prática do futebol pelo Estado brasileiro em 1941 – e depois em 1965 – revela o que há muitos séculos têm se repetido: a restrição da autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos.
Além disso, a palavra anistia representa melhor o contexto e o sentimento vivido entre fins da década de 1970 e início de 1980. Como na música de João Bosco e Aldir Blanc, lançada em 1978: “um Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu num rabo de foguete”. O Futebol Feminino também teve que “exilar-se” nos dois períodos de ditadura (1) que marcaram o século XX. Contudo a anistia ao Futebol Feminino não foi ampla e irrestrita, ela foi – e ainda é – condicionada ao crivo de todo um universo dominado por homens – ou, talvez buscando um sentido mais bourdiano, dentro d’um habitus incorporado por uma masculinidade hegemônica (2) (VALE DE ALMEIDA, 1996).
Torna-se importante salientar que desde o seu processo de “anistia” até hoje, o Futebol Feminino esteve timidamente presente nas pautas de lutas dentro de movimentos feministas. Mulheres entrando em campo (e no campo) tornou-se símbolo de resistência às situações de dominação. Jornais feministas da década de 1980 abriam espaço para reportagens e entrevistas que envolviam a temática. Além disso, o I Festival Nacional das Mulheres nas Artes, promovido pelo Teatro Ruth Escobar, teve como encerramento uma partida de futebol com equipes de jogadoras dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo no Morumbi. O jogo havia sido proibido pela Federação Paulista de Futebol, uma vez que infringia a regulamentação que impedia mulheres de jogarem em estádios oficiais. A saída foi descaracterizar o formato de “jogo de futebol”, transformando-o numa apresentação: diminuíram o tempo e designaram um árbitro de fora do quadro da Federação. Ao final, ainda teve goleada das cariocas e a cena antológica de Ruth Escobar trocando camisas com uma das jogadoras.
Desde a sua regulamentação, o Futebol Feminino vem buscando um espaço no país, conhecido como o “celeiro de craques” e grande exportador de pés-de-obras (DAMO, 2005). A categoria feminina começou a assumir dimensões globais a partir dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, quando a Seleção Brasileira ficou em quarto lugar. No final dos anos de 1990 e início de 2000, observou-se o primeiro incremento na movimentação de futebolistas para o exterior. Já, nos últimos quinze anos, as habilidades das atletas brasileiras passaram a ser reconhecidas no panorama futebolístico internacional, o que fez com que fossem vistas enquanto mercadorias em potencial.
É bem verdade que muitas mudanças ocorreram, sobretudo, nos últimos dez anos. Aliás, como já foi mencionada anteriormente, a emergência dos movimentos feministas para os grandes públicos ou o que ficou conhecido através dos grandes veículos de comunicação como a Primavera das Mulheres serviu como eventos catalisadores dessas transformações. Diante dessa premissa, o Futebol Feminino tornou-se um símbolo de luta e de transgressão. Contudo, o que por um lado abriu portas para a regulamentação, para a criação de clubes, campeonatos, etc., por outro, fez com que a categoria se enredasse num funesto jogo de dominação e de classificações valorativas.
1) Durante os períodos conhecidos como Estado Novo ou Ditadura de Getúlio Vargas (1937-45) e Ditadura Militar (1964-85).
2) Segundo Miguel Vale de Almeida, “a masculinidade hegemónica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível – na prática e de forma consistente e inalterada – por nenhum homem, exerce sobre todos os homens e sobre as mulheres um efeito controlador” (1996, p. 3).
Pós-doc no PPGICH