A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada há mais de uma década no Brasil, com o objetivo de prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Entretanto, infelizmente, a mera existência desta legislação não garante que a violência contra mulheres deixe de existir. De acordo com o relógio da violência, veiculado pelo Instituto Maria da Penha, a cada 2 (dois) segundos, uma mulher ainda sofre algum tipo de violência em nosso país. Em períodos de austeridade e crise político-econômica, a situação de vulnerabilidade das mulheres tende a aumentar (BIROLI, 2016), notadamente por conta da precariedade dos serviços de educação e saúde, o que faz com que sejamos “convocadas” a reassumir posições de cuidado doméstico e familiar. Com isso, estamos expostas às fragilidades e sobrecargas que recaem sobre este espaço.
Uma das principais dificuldades para lidar com a violência doméstica se deve às raízes históricas e socioculturais do fenômeno. Como bem nos lembra a filósofa argentina Maria Lugones (2008), o passado escravocrata consolidou uma espécie de colonialidade de gênero em nosso território. Resumidamente, isto quer dizer que a pirâmide social se constrói com o posicionamento dos sujeitos e a definição dos seus destinos. No topo da pirâmide social, está o homem colonizador, com todos os seus marcadores sociais de identificação (branco, cisgênero, heterossexual, detentor de capital). O que sobra, na base desta pirâmide, é a mulher de cor, completamente assujeitada. Ela não é sequer concebida como sujeito. É o extremo oposto do homem branco. É o não-sujeito. Esta dualidade sedimentou uma dinâmica de disparidade homens-mulheres, marcada por muita violência, morte, e segregação. Embora as mulheres brancas também sofram com a prática de violência, é preciso destacar que as principais vítimas de violência doméstica e feminicídio, no Brasil, ainda são as mulheres negras e indígenas (cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018).
Outro fator que, por muitas vezes, impede um enfretamento efetivo do fenômeno em questão, é que ele se apresenta de múltiplas formas. Se, antes da Lei Maria da Penha, a violência física era a única forma reconhecida de violência doméstica, hoje, outras modalidades compõem este quadro e são vistas dentro do mesmo conceito. Assim se passa com a chamada violência psicológica. Categorizada como violência doméstica e familiar contra mulheres, pela primeira vez, em 1994, por meio da chamada Convenção de Belém do Pará, a legislação brasileira também passou a acolher o conceito em 2006, no art. 7, inc. II, da mencionada lei.
Trata-se de qualquer conduta capaz de causar dano emocional, diminuição da autoestima, prejudicar/perturbar o pleno desenvolvimento, além de causar prejuízo à saúde psicológica ou à autodeterminação. A definição legal é muito ampla, compreende condutas como controlar ações, comportamentos, crenças e decisões, ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração, limitação do direito de ir e vir, dentre outras.
É importante destacar que nem toda modalidade de violência psicológica reflete, por si só, na ocorrência de um crime. Os crimes devem ter previsão legal expressa, e frequentemente vêm acompanhados de penas. A Lei Maria da Penha apenas passou a veicular um crime no ano de 2018, quando tipificou a conduta de descumprimento de medida protetiva de urgência, em seu art. 24-A. Todavia, em seus demais dispositivos, inclusive aqueles que dispõem de conceitos de violência, não há propriamente crimes. Há, por outro lado, parâmetros de definição.
Os crimes, a seu turno, devem ser buscados na legislação apropriada, principalmente no Código Penal. Há alguns, ali dispostos, que podem configurar espécies de violências psicológicas, como é o caso do crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal brasileiro (“Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”) e sujeito à pena de detenção de 1 a 6 meses, ou multa.
Apesar de várias pesquisas indicarem que as práticas de violência física são comumente antecedidas pela violência psicológica (v. MACHADO, 2017), esta é muito difícil de se apurar, primeiro porque está sujeita ao mesmo regime probatório das outras formas de violência, e nem sempre uma mulher consegue se perceber em um contexto de violência psicológica, quanto menos coletar evidências. Outra dificuldade é que, pela legislação penal brasileira, crimes enquadráveis no conceito de violência psicológica, em sua maioria, exigem alguma manifestação expressa de vontade da vítima quanto ao processamento do agressor. Quando não, exigem, como no caso do crime de injúria (art. 140, do Código Penal), que a própria mulher assuma a titularidade e proponha a ação penal referente, ainda que representada legalmente. Estas barreiras fazem com que os casos sejam levados ao conhecimento da polícia, porém não cheguem sequer à apreciação do Judiciário, resultando no arquivamento de boa parte dos feitos investigativos.
Diante disso, é de suma importância compreender que o principal intento da Lei Maria da Penha, desde a sua origem, é o de constituir uma rede protetiva de enfrentamento à violência, capacitando agentes, amparando mulheres, tratando agressores/as, e prevenindo novas formas de violência em nossa sociedade. Embora a violência se consume por meio de condutas individuais, conforme já dito neste texto, suas raízes são históricas e estruturais, independentemente das formas pelas quais se manifesta.
Portanto, não se pode exigir que a mulher que sofre violência tenha de lidar com todo o complexo problema individualmente. É preciso, em todos os casos, lutar para manter e aprimorar uma estrutura de atendimentos que garanta, sobretudo nos casos de violência psicológica, liberdade de escolha dos caminhos e métodos de enfrentamento a serem seguidos. Daí a importância de mecanismos extrajurídicos de intervenção. Nestes espaços, como é o caso dos centros de referência especializadosd+ dos centros de apoio psicossociald+ dos projetos especializados que atendem mulheres nas universidades públicas brasileirasd+ dentre outros, a escuta qualificada e a oferta de políticas públicas de acolhimento e assistência (em busca da autonomia financeira, do cuidado dos/as filhos, dentre outras) pode garantir melhores condições de escolha para se desvencilhar de uma relação abusiva e violenta, muitas vezes, sem a necessidade de recorrer ao sistema de segurança ou de justiça. De outro turno, se esta necessidade for sentida pelas mulheres, é preciso ter à disposição espaços e agentes com qualificação suficiente para escutar as necessidades e urgências das próprias mulheres.
Por tudo isto, é de fundamental importância seguir lutando para preservar a melhorar a estrutura protetiva que culminou com a criação da Lei Maria da Penha. Se não o fizermos, não apenas os dados da violência física e do feminicídio seguirão nos surpreendendo pelo incontrolável aumento, como também a própria violência psicológica – sorrateira e irreversivelmente, tomará mais e mais espaço nos contextos domésticos e familiares.