O carnaval desnudado

Nunca entendi direito qual o ofício de um jornalista. Às vezes, parecem ser  meros “transmitidores” de notícias, outras vezes parecem ser “intérpretes” extrapolando subjetivamente  o escopo do objeto noticiado, algo que se mostra totalmente desnecessário para aqueles que dotados de um espírito livre e questionador são capazes de interpretar a notícia por si mesmos. O fato é que o dito “bom” jornalismo parece advir de um justo e honesto equilíbrio entre transmitir e interpretar a notícia.

Assim, diante da reação quase unânime da grande mídia e também de algumas mídias alternativas em repercutir negativamente um vídeo publicado pelo presidente Bolsonaro,  resta apenas a constatação de que pelo menos grande parte dos jornalistas que cobriram a matéria deveriam se limitar a transmitir a notícia. Sejamos mais concretos.

Segundo relato da mídia, o vídeo veiculado por Bolsonaro mostra uma cena do carnaval de rua em que aparecem dois homens. Enquanto um deles se auto-estimula um outro urina em sua cabeça, numa prática que parece muito comum  e disseminada entre os praticantes da modalidade a ponto de ter até um nome específico: “golden shower”.

O problema dos jornalistas “intérpretes da notícia” e também auto-proclamados formadores de opinião (quanta pretensão!!!)  não é  tanto o de criticado Bolsonaro  por  ter veiculado um vídeo  contendo material dito “obsceno”,  já que tal reprovação é acertada, pois Bolsonaro poderia ter feito sua crítica  sem mostrar explicitamente o ato. O problema dos “jornalistas intérpretes” é o de terem parado exatamente aí, sem perceber que todo aquele que critica Bolsonaro por ter publicado um vídeo obsceno tacitamente concorda que o conteúdo do vídeo é realmente obsceno.

Ora, mas se identificam e concordam que há conteúdos obscenos que não podem ser veiculados em público, onde estava essa mesma mídia ao naturalizar tantas outras performances que, sob os mesmos critérios aplicados ao conteúdo do vídeo, também seriam  tidas por obscenas? Amplificando um pouco mais o problema, parece estranho que a mídia progressista (permissiva?) tenha tido uma recaída conservadora a ponto de nenhum jornalista ter  tido a coragem de questionar se haveria mesmo algo obsceno na prática do “golden shower”, afinal, não são eles que pregam em seus artigos de opinião que as pessoas devem ser livres para se expressar na forma como bem desejarem?  Talvez a única explicação razoável para esse duplo padrão dos jornalistas progressistas (permissivos?) seja mesmo a ânsia de explorar uma notícia que é desfavorável ao atual presidente.

É aqui que surge uma questão que passou despercebida aos nossos “jornalistas intérpretes”, já que o desdobramento da notícia não comportou nenhuma crítica e tampouco reflexão sobre dois aspectos essenciais:

1. Qual o grau de generalidade com que esses e outros atos ocorrem no carnaval de rua que é um evento público, livre a todas as idades, e que atrai multidões?

 

2. Estamos hoje propensos a naturalizar manifestações  ditas “artísticas” envolvendo conteúdo que outrora seriam considerados inapropriados?

Definitivamente, se a forma como Bolsonaro colocou sua crítica é questionável, a sua intenção não é necessariamente ruim, pois nos leva a ponderar os dois questionamentos anteriores quanto à generalidade e à naturalidade com que esses e outros atos  são recebidos na sociedade. Em suma, do que o presidente escreveu em seu Twitter sobre certos blocos e considerando o caráter popular do carnaval e apenas o aspecto comportamental de quem participa da festa, será que a partir da análise desse comportamento podemos dizer com segurança que o carnaval é uma festa onde famílias podem trazer seus filhos sem nenhum receio do que vão presenciar?

O questionamento sobre a generalidade com que atos inapropriados ocorrem é relevante até mesmo para dirimir dúvidas, por exemplo, se mulheres que pintam em seus corpos dizeres como “não é não!” fazem isso meramente para marcar posição de emponderamento feminino ou se realmente há o fato perturbador de que a festa popular carrega em si um risco considerável de abusos para as mulheres. Igualmente merecedor de reflexão é o comportamento descomedido de muitos jovens que sob efeito de substâncias perdem todo o pudor despejando nos ouvidos alheios um festival de baixarias. Algumas letras exibem um caráter sexual tão explícito e de menosprezo pela mulher que nos leva a indagar se esses rapazes e moças realmente concordam com o que estão cantando.

É necessário discernir que tais atos não se originam do carnaval em si, como se a natureza descontraída da festa os propiciasse, mas sim da permissividade com que a sociedade os naturaliza, afinal tais performances de cunho sexual tem sido comum em vários outros eventos como paradas LGBT, eventos culturais onde crianças são expostas a performances centradas na nudez e as expressões da sexualidade de adultos, e também em exibições de pinturas retratando práticas sexuais diversas, por exemplo, como o que ocorreu na mostra do “Queer Museu”. E o que não dizer de abordagens de educação sexual que  acabam por aguçar as fantasias sexuais de crianças e adolescentes, onde criam até mesmo o “cantinho” das crianças para que possam de forma reservada “explorar” seus corpos.

Mas, façamos justiça pelo menos num ponto. O carnaval, com a super-dimensão que tem como festa popular, dilui estratificações sociais e expõe uma radiografia da sociedade ao agregar no mesmo espaço e em um tempo limitado todo o tipo de gente, sem discriminação de qualquer tipo. Assim, o carnaval, para o bem ou para o mal, cumpre  a função pedagógica de  mostrar casos – quer sejam esparsos ou corriqueiros – onde coletivamente nos deparamos com a nossa própria virtude ou degradação, ao gosto do leitor.

Professor do Departamento de Matemática