Em memória de Maria Aparecida (Cida) e Arnoldo Castanho de Almeida – irmã, cunhado, compadres – imensos e eternos amigos (dos maiores que já tive em minha vida) –, “encantados”, respectivamente, em 8 de outubro e 12 de julho de 2018
Lembro-me do padre jesuíta italiano Ruggero – tão alto – a gente varando noites, conversando sobre Teilhard de Chardin (1881-1955), Soren Kierkegaard (1813-1855), existencialistas cristãos como Gabriel Marcel (1889-1973) – que rejeitava o termo “existencialismo” –, Emmanuel Mounier (1905-1950) – fundador da revista “Esprit” –, agnósticos e ateus, como Albert Camus (1913-1960), Jean Paul Sartre (1905-1980), e marxistas como Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).
No final – sempre no final – ele arrematava:
– Nunca te esqueças da Misericórdia Divina.
(Ele era sempre profundo, mas – nesta frase – queria ser abertamente “solar”.)
MISERICÓRDIA DIVINA.
Ele acreditava que eu era possuidor de uma “fé forte e cósmica”, mas que o tempo, as leituras e as dúvidas me afastaram dela.
– Quero te dar mais ÂNIMO, e falava mais alto e soletrava a palavra “ÂNIMO”.
Ria, me abraçava.
Ruggero era muito culto, leitor voraz, mas sua sabedoria maior era a simplicidade.
Tomávamos vinho, assistimos juntos duas vezes “O Sétimo Selo”, 1957, (“Det sjunde inseglete”) ”Morangos Silvestres” (Smultronstället”), 1957, de Ingmar Bergman (1918-2007).
Também vimos várias vezes a “Rastros de Ódio” (“The Searchers”), 1956, de outro grande mestre: John Ford (1894-1973).
Gostávamos muito também de Orson Welles (1915-1985) e assistimos algumas vezes “A Marca da Maldade” (“Te Touch of Evil”), 1958, que admirávamos muito, até mais que “Cidadão Kane” (“Citizen Kane”) 1941 – por muitos considerado o melhor filme de todos os tempos.
Um dia, ele morreu.
Tinha um carinho enorme pelos “humilhados e ofendidos da terra”, como dizia, pelos pobrezinhos, pelos sem nada.
Modesto, batina puída, evangelizava operários em comunidades pobres de Porto Alegre e pescadores em Florianópolis – não era amado pelos hierarcas, poderosos e conservadores da Igreja– afora a burguesia da capital gaúcha e da Ilha do meu nascimento.
Estávamos na década de 50 do século passado.
E um dia– parece incrível – fui eu a consolá-lo.
Triste, ferido com injustiças e perseguições (que não relato aqui), aquele sacerdote loiro (parecendo um camponês do interior de Santa Catarina), de quase dois metros, desajeitado, possuidor de um coração maior que ele, morando em uma casinha simples de madeira, num bairro humilde de Porto Alegre (antes estivera durante dois anos em Ponta das Canas, em Florianópolis, praia bela do Norte da Ilha de Santa Catarina, minha terra natal – ainda aprazível, pregando para os pescadores, dando para os pobres até a roupa do corpo, dividindo tudo o que tinha.
Foi o primeiro padre socialista que conheci – visceralmente autêntico.
Sempre achei que ele nascera na época errada. Deveria ter vivido na época das Catacumbas, levando a palavra de um Jesus pobre e libertador contra o Império Romano.
Resolvemos entrar na AP (Ação Popular) – organização originária da esquerda católica –, mas isso é outra história.
Ele lembrava-me o corajoso Padre Nando, do romance ”Quarup”, 1967” (um dos mais belos da literatura brasileira), de Antônio Callado (1917-1997) que, no final, opta pela luta armada no combate à ditadura militar.
Escrevi acima: Um dia, ele morreu.
Qual a causa (indagam)? Foi “pelo coração” – ataque cardíaco. Mas acho que morreu de tudo, de tudo um pouco, devido às perseguições sofridas, às injustiças que percebia no tão imperfeito mundo, à inveja de que foi vítima, difamado por tantos seres medíocres e mesquinhos.
Havia abandonado a batina, voltou para a Itália, mas retornou ao Brasil para se despedir.
Então, já era um velho, cabelos brancos, parecendo mais baixo, o olhar azul mais triste.
– “Desta vez, fui eu quem perdi a Fé”, me confessou.
Tentei animá-lo, não falando em igreja, “reconversão”, nada. Mas nos filmes que havíamos assistido juntos.
– Não há nada depois daqui, ele disse.
“Depois daqui” era depois da vida terrena– é claro (sinto-me agora redundante).
Hoje, no crepúsculo da minha vida, doente, vejo o seu rosto. É um retrato que mandei emoldurar.
Mostrava o momento de um churrasco numa chácara em Viamão, com poucas pessoas, eu, Décio Andriotti (que morreu em Milão, aos 85 anos, em 29 de abril de 2018, um domingo), Eduardo Dutra Aydos, Rogério Scanzerla (1946-2004), e sua então mulher Helena Ignês.
1969. Rogério fora lançar em Porto Alegre, no extinto “Cine Marrocos”, no bairro Menino Deus, o seu hoje clássico “O Bandido da Luz Vermelha” (1968).
Tomamos vinho, ríamos muito. Era a celebração da amizade.
Devo ao Décio – meu professor no antigo Ginasial (1958-1961) do “Colégio Catarinense”, em Florianópolis –, ao meu ex-professor no Clássico (1962-1964), “Colégio Anchieta”, Porto Alegre, também jesuíta (nos dois educandários estudei com bolsa de estudos), a o Roberto Figurelli, ao Paulo Fontoura Gastal (1922-1996), minha paixão pelo cinema.
Ruggero, para mim, era um “romântico crepuscular”.
Ele achava o mesmo de mim.
Ofertou-me ÂNIMO – com seu enorme coração e compaixão – e não está mais aqui.
Mas não restou o oblívio. A fé vai e volta. Aparece, desaparece. Está mais longe da infância do que eu mesmo. Do que eu queria. Do que meus pais aspiravam. Tenho culpa? Deus perdeu o meu passaporte? Do meu país? Estou sentimental demais?
Ele era daqueles seres que só aparecem de vez em quando. Muito poucos homens chegam como tu, Ruggero.
Nunca te esquecerei. Devo a ti o que chamo de “HUMANISMO EM TEMPOS ÁSPEROS E DISTÓPICOS”.
Sinto-o (RUGGERO) presente – como vários amigos já mortos – em muitos momentos (a maioria) desta vida – na sua reta (ou curva) de chegada.
Comentário:
Caro Emanuel Medeiros Vieira,
Li de imediato e completamente o teu texto, enxuto e verdadeiro, estóico e melancólico diante desse paradoxo que todos nós defrontamos: nossos sonhos (princípios, valores, virtudes…) e a dura realidade da vida. Não esquecendo nunca que são aqueles que dão sentido a esta. Até o momento em que nos encontramos, também, todos nós, com este segundo paradoxo, que nos confronta a dura realidade da vida e a incerta expectativa da morte. E que nos leva a pensar se, também, não é a severidade daquela, que nos agrega sentido ao morrer. Eu penso assim e agradeço por esse tempo vivido, pela sua dor e alegria, pela sua memória e desmemoria. Se existe algo a refletir, sobre tudo que já foi dito neste teu texto, tão denso quanto completo, é que no espaço/tempo transpassado/transcorrido existe o momento, agora translúcido, da neutralidade do espírito que, na sua jornada neste plano, não é apenas verdadeiro e nem totalmente falso, mas absorve e projeta o sentimento profundo da existência, que aprendemos a conhecer nas obras e nos fatos que relembras, interpretas, e aos quais a tua trajetória confere dignidade. É uma grande honra privar da tua amizade e partilhar da tua confidência. Publica esse texto, meu caro amigo, em testemunho da nossa humanidade.
Abraço do Eduardo Dutra Aydos