Aluno de doutorado da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, o pesquisador italiano Giulio Regeni, de 28 anos, foi morar no Cairo para estudar de perto a atuação de sindicatos independentes. Apareceu morto numa vala, com o corpo mutilado, sinais de espancamento e de tortura.
O corpo ficou tão desfigurado que a mãe de Regeni disse ter reconhecido o filho “pela ponta do nariz” no necrotério.
“Naquele rosto, eu vi todo o mal do mundo e me perguntei porque todo mal do mundo se virou contra ele”, disse a mãe do pesquisador, durante uma entrevista concedida pouco mais de um mês depois da notícia da morte do estudante.
O corpo de Giulio Regeni foi encontrado em fevereiro de 2016 e somente nesta semana, quase três anos depois do crime, um promotor em Roma anunciou que cinco oficiais de segurança estão sendo investigados por suspeita de terem sequestrado o pesquisador. Quatro deles são integrantes do primeiro escalão da Agência de Segurança Nacional do Egito e são oficiais de alta patente – um general, dois coronéis e um major estão entre os investigados.
O caso de Regeni é acompanhado de perto pela Scholars at Risk (Acadêmicos em Risco), uma entidade sem fins lucrativos que monitora a liberdade acadêmica em dezenas de países, e que cobra um desfecho com identificação e punição dos culpados pela morte do italiano.
Relatório da entidade lançado no fim de novembro, contabilizou 294 casos que classificam como ataques contra pesquisadores em 47 países, registrados num período de 12 meses, entre setembro de 2017 e agosto deste ano.
A maioria deles é de prisões (88 casos), de assassinatos, desaparecimento e violência (79) e de processos (60). Há ainda casos de demissões, restrições para viajar e ameaças contra pesquisadores.
“Descrevemos os ataques ao redor do mundo como uma crise que existe há algum tempo. Estamos vendo um aumento das pressões em alguns países como na Turquia, Nicarágua e Hungria. Ao mesmo tempo, nosso trabalho em grande parte é lançar luz sobre um problema que é subnotificado”, afirma Jesse Levine, consultora sênior da Scholars at Risk, quando questionada se as situações de risco enfrentadas por acadêmicos está crescendo.
Ela explica que o aumento dos casos registrados pode representar, ao mesmo tempo, mais ataques e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de incidentes que antes não eram encarados como ataques à liberdade acadêmica.
Ameaça à ‘segurança nacional’
Levine afirma que a Scholars at Risk sempre leva em consideração as justificativas dos governos usadas para prender, deter ou processar pesquisadores nacionais e estrangeiros. Mas, segundo ela, há indicativos de que frequentemente governos evocam leis de segurança nacional “mais como pretexto do que por uma ameaça genuína”.
Em casos de estrangeiros, por exemplo, o trabalho do pesquisador corre o risco de virar incidente diplomático, além de caso de polícia.
Tudo indica ser esse o caso do estudante de doutorado Matthew Hedges, de 31 anos, acusado de ser um espião britânico. Depois de sete meses detido nos Emirados Árabes, o aluno da universidade de Durham recebeu o perdão da pena de prisão perpétua e foi mandado de volta ao Reino Unido.
Hedges não é o único acadêmico acusado de se travestir de pesquisador para disfarçar a real intenção de coletar dados estratégicos para serviços de inteligência. No caso de Hedges, o Reino Unido nega que ele seja um agente do MI-6, o serviço de inteligência britânico – mas os Emirados Árabes gravaram em vídeo uma suposta confissão.
Segundo o relatório da Scholars at Risk, o médico e professor sueco-iraniano Ahmadreza Djalali, que pesquisa medicina de desastres, foi forçado a assinar uma falsa confissão no ano passado na qual admitia crimes relacionados à segurança nacional no Irã e, em seguida, condenado à morte.
Ele foi detido em abril de 2016 quando participava de uma conferência e permanece preso na penitenciária Evin, em Teerã. Em agosto deste ano, Djalali teve negado o pedido de ter assistência médica mesmo depois de declarar ter problemas de saúde.
O estudante de graduação Xiyue Wang, da Universidade de Princeton (EUA), também foi preso no Irã em 2016. Condenado a dez anos de prisão, ele é acusado de estar “infiltrado” enquanto pesquisava documentos no arquivo nacional no país. Wang tinha conseguido autorização prévia para consultar documentos produzidos nos séculos 19 e no começo do 20, mas autoridades iranianas alegam que ele estava compartilhando os papéis com entidades internacionais, entre elas o Departamento de Estado dos EUA.
“Wang permanece detido na penitenciária Evin, onde foi submetido a tortura e sofre de problemas de saúde”, diz o relatório da Scholars at Risk.
Na mesma prisão está Hamid Babaei, um estudante de doutorado em finanças da universidade belga de Liège. Babaei foi preso quando fazia uma viagem com a esposa ao Irã. Segundo a Scholars at Risk, ele teria se recusado a espionar colegas iranianos na Bélgica e foi detido por “agir contra a segurança nacional por comunicar com um governo hostil”. Ele cumpre pena de seis anos de prisão.
O italiano Giulio Regeni também teria sido confundido com um espião. Semanas antes de aparecer morto no Egito, Regeni havia sido denunciado à polícia por Mohamed Abdallah, presidente do sindicato de vendedores de rua. Abdallah declarou que procurou a polícia por acreditar que o pesquisador fazia espionagem.
Profissão de risco
Mas, de acordo com uma representante da Scholars at Risk, ser pesquisador pode ser uma profissão de risco não apenas em países da África ou do Oriente Médio. Casos de violência e ameaças, tampouco, estão restritos a regimes autoritários.
O Brasil não é citado no relatório deste ano da Scholars at Risk, mas na lista de países onde foram registrados casos de restrições de liberdade acadêmica em 2017 e 2018 estão, por exemplo, a Argentina, os EUA, o Japão, além de China, Irã, Turquia e Paquistão.
“Não acho que seja possível dizer que certos tipos de regimes promovem certos tipos de ataques. Os ataques que documentamos acontecem em todos os lugares, em países autoritários e em democracias saudáveis também”, afirma. “Apesar de envolverem diferentes níveis de gravidade, identificamos que são contínuos, todos com motivação semelhante: silenciar acadêmicos, estudantes e o espaço da educação superior”.
Laurie Brand, professora da Universidade Southern California (EUA) e presidente do comitê para liberdade acadêmica da Associação de Estudos de Oriente Médio, também reforça que “regimes autoritários e democracias de todos os tipos” podem representar perigo e riscos para acadêmicos.
“Regimes autoritários tendem a tratar seus nacionais de forma mais virulenta. E pode até ser que em determinados países não haja prisão ou processo sem fundamento, mas o pesquisador pode ser demitido e ter a carreira igualmente prejudicada. Temos casos assim nos EUA”, avalia Brand.
O comitê presidido por Laurie Brand trabalha, principalmente, apurando denúncias e, quando comprovadas, redigindo cartas para mobilizar a comunidade acadêmica internacional, a sociedade civil e atores governamentais narrando cada caso. “Somos cientes de que o impacto pode ser limitado, mas somos parte de intervenções maiores. Sentimos que vale a pena porque os familiares e os próprios acadêmicos sentem que não estão sozinhos”, diz Brand, que não limita sua atuação a casos de estrangeiros em situação de perigo mas também atua na tentativa de proteger pesquisadores ameaçados e perseguidos nos próprios países.
Avaliação de risco prévia
Para Jannis Grimm, pesquisador do Instituto de Estudos de Movimentos Sociais em Berlim e co-autor do projeto SAFEResearch, que avalia as condições de segurança de pesquisadores, governos tendem a mimetizar certas condutas contra os que dizem ser uma ameaça. Ele afirma que cada vez mais se olha com atenção para os vizinhos e outros regimes para reagir e, por isso, como a comunidade acadêmica age e como lida com os incidentes pode influenciar como novos casos serão conduzidos.
“Autoridades do Tajiquistão ou do Iraque devem ter olhado de perto para a forma como os Emirados Árabes lideram com o caso de Matthew Hedges e como os egípcios conduziram o desaparecimento de Giulio Regeni. Por outro lado, os Emirados Árabes poderiam ter agido de outra forma – e talvez Matthew ainda estaria preso – se não tivessem testemunhado o desastre em termos de relações públicas que os vizinhos sauditas enfrentaram com a morte de Jamal Khashoggi (o jornalista do Washington Post assassinado dentro do consulado saudita em Istambul, Turquia).
Grimm diz que pesquisadores precisam ficar alertas porque estão cada vez mais expostos e suscetíveis a medidas repressivas.
“Os riscos variam de acordo com a capacidade dos agentes de repressão. No Egito, por exemplo, é mais provável que acadêmicos sejam monitorados por um exército de informantes baratos a serviço de qualquer agência de segurança. Já na China e na Rússia, o monitoramento digital se destaca como a maior ameaça a pesquisadores”, avalia Grimm, que está prestes a lançar em parceria com outros colegas um livro sobre segurança humana e digital de acadêmicos.
Ele diz ainda que detalhes da vida privada de pesquisadores, como orientação sexual, amizades, hábitos do dia a dia e sites acessados têm sido usados para ameaçar acadêmicos em diferentes países.
“Por isso é muito importante avaliar os riscos logo no início, antes de ir ao trabalho de campo, com acadêmicos mais experientes”, observa Grimm, salientando a necessidade de se avaliar previamente não apenas o objeto a ser estudado mas também o tipo de pergunta que a pesquisa pretende responder e os métodos usados para coletar dados.
O professor brasileiro da universidade britânica King’s College London, Vinicius Mariano Carvalho, diz haver “um certo ‘romantismo’ em dizer que se vai para uma pesquisa de campo”. “Mas é fundamental lembrar-se que não se está indo para uma aventura de mochileiro apenas”, salienta.
Por isso, diz o professor, em qualquer viagem de campo para pesquisa ou estudo é necessário fazer uma rigorosa avaliação de riscos, que inclua recomendações prestadas pelo serviço consular do país do pesquisador, no caso de estrangeiros, e de autoridades e moradores locais.
Carvalho lista uma série de recomendações que considera útil tanto para estrangeiros quanto para nacionais que vão a campo fazer pesquisa:
– Em qualquer viagem de campo para pesquisa ou estudo, faça uma rigorosa avaliação do risco, que inclua, por exemplo, recomendações prestadas pelo serviço consular do seu país. Não se deve nunca negligenciar recomendações com relação a cuidados de saúde e de segurança.
– Se não dominar a língua do local para onde se vai, tenha contatos de pessoas que possam servir-lhe como tradutor.
– Ouça as recomendações locais com relação a hábitos, posturas e cuidados com segurança.
– Ainda que seja tentador, não se meta em debates políticos em contextos nos quais você não tem ideia das possíveis consequências para você e, principalmente, para as pessoas locais com as quais você está em contato.
– Lembre-se que em outras culturas, você é a única coisa diferente, externa, exótica. Não deixe que sua própria cultura transpareça como modelo para outros.
– O pesquisador tem que se colocar na postura de aprendiz. Ouvir mil vezes mais do que falar.
– Cumpra rigorosamente as leis locais, mesmo aquelas que te pareçam absurda.
– Não questione autoridades locais sem o apoio do consulado do seu país. Na dúvida, pergunte, mas não assuma a resposta com base na experiência de sua própria cultura.
“Não se deve nunca negligenciar recomendações com relação a cuidados de saúde e de segurança”, diz, lembrando que os cuidados a serem tomados não se limitam à segurança do próprio pesquisador mas também de possíveis entrevistados e pessoas do local onde a pesquisa está sendo feita. “Há que ter uma enorme responsabilidade ética nesse sentido”, emenda.
São Paulo
Não expor os indivíduos mas revelar o sistema de corrupção, truculência e violência na Polícia Civil de São Paulo foi a maior preocupação do pesquisador Guaracy Mingardi, atualmente consultor em segurança e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Mingardi é a prova que pesquisadores em situação de risco e que recebem ameaça não é exatamente uma novidade. Nos anos 1980, quando fazia o mestrado na Unicamp, ele decidiu virar investigador de polícia para pesquisar a polícia. Passou na seleção e foi trabalhar como policial, para entender como os policiais se relacionavam com os trutas e os gansos – jargão policial da época para criminosos e informantes.
“Na época, muita gente teve medo do que eu estava fazendo. Eu não. Era a única forma e a melhor de entender o que acontecia lá dentro. Vi cenas de tortura, como pau de arara. Nunca bati em ninguém, mas colocavam a gente na sala até para ver como reagiríamos”, recorda.
Dois anos depois de ver muito e jamais revelar o real motivo de estar ali na delegacia, ele deixou a polícia e foi conduzir as entrevistas. Foi aí que vieram as ameaças. Foram tantas que até o enteado se acostumou a atender telefonemas nos quais a voz no outro lado da linha anunciava “você vai morrer, f.d.p…”.
Mingardi foi orientado a publicar logo a pesquisa.
“Não expus ninguém individualmente, mas expus o sistema corrupto e violento e discuti a necessidade de reforma”, afirma. “Claro, naquela época ninguém discutia ética com se discute hoje, que é muito importante”, dizendo que riscos podem ser minimizados por pesquisadores mas que há situações em que não há como avaliar propriamente sem ser “por dentro” – e essas podem ser potencialmente perigosas a depender do objeto de estudo.
Fonte: BBC Brasil